terça-feira, 29 de agosto de 2006

A AGONIA DO RIO ACRE

Na semana passada, quando fiz uma breve viagem de uma hora no rio Acre, para tirar fotos da cidade cenográfica de Porto Acre, a canoa encalhou oito vezes.

Entre a Porto Acre real e o núcleo cenográfico da Rede Globo, existem trechos onde é possível atravessar o rio com água pouco acima do tornozelo.

Fiquei especialmente impressionado com o trecho mostrado precariamente na foto acima, onde o assoreamento deixou a calha do rio com menos de 10 metros de largura.

O jornalista Sílvio Martinello, diretor do jornal A Gazeta, assina hoje a reportagem
"Os rios que 'comandavam a vida' na Amazônia estão morrendo ", onde expõe a situação dramática do rio Acre, uma vítima dos crimes ambientais cometidos pelos fazendeiros que devastaram as florestas de suas margens para plantar capim.

Sempre vale a pena ler o que o coleguinha Martinello escreve, quando busca alguma história fora dos limites de sua cabine refrigerada e monitorada por câmeras de TV.


Os rios que 'comandavam a vida' na Amazônia estão morrendo


SÍLVIO MARTINELLO


Não dá para prever se será daqui a um ou dez anos, mas uma coisa é certa: se não forem tomadas medidas urgentes para preservar e revitalizar o Rio Acre, a cidade de Rio Branco e mais seis cidades acreanas correm sério risco de sofrer colapso no abastecimento d'água".

A afirmação é do geógrafo Claudemir Mesquita, especialista em Planejamento e Uso de Bacias Hidrográficas, pode parecer alarmista, mas não é. Tanto é que o governo do Estado e a prefeitura de Rio Branco, a Capital do Acre, prevenindo-se do susto causado pela grande seca do ano passado, apressaram-se este ano em comprar mais duas bombas de captação de água do Rio Acre, que abastece uma população de cerca de 300 mil habitantes.

Com efeito, os sinais dessa morte lenta e anunciada podem ser vistos do cimo dos barrancos, formando um cenário de desolação, numa sucessão de crimes ambientais impunes. Do porto do mercado municipal à terceira ponte, passando pelo Centro da cidade e dezenas de bairros periféricos, o rio transformou-se em uma cloaca.

Suas margens escalavradas apresentam fendas enormes, provocadas pela erosão. Desprotegido de qualquer tipo de vegetação ciliar nativa, até as canaranas foram destruídas, a erosão vai depositando todo tipo de entulhos, formando bancos de areia, os quais, em alguns pontos, já tomaram mais da metade do rio, como se quisessem estrangulá-lo.

Neste período de estiagem, o rio virou um estreito canal de apenas vinte a trinta metros, permitindo apenas a passagem de pequenas embarcações, como canoas, catraias e batelões. No porto do mercado, pode-se ver dezenas de batelões parados, que transportam a produção dos colonos ribeirinhos. Alguns avariados ou porque encalharam nos bancos de areia, foram abandonados.

São 11h da manhã, vários donos dessas embarcações dormem debaixo das lonas ou coberturas de madeira, extenuados pelo esforço da viagem que empreenderam desde madrugada, para trazer ao mercado melancias, cachos de banana, galinha caipira e outros produtos hortigranjeiros.

Antônio Carlos Ferreira, 35 anos, dono de um batelão, que possui uma colônia no Seringal Capatará, que pertenceu ao libertador do Acre, o gaúcho Plácido de Castro, confirma que em alguns trechos, logo acima da cidade, o rio está ameaçando "apartar".

Em um desses trechos, nas proximidades do bairro Taquari, Antônio Carlos conta que, se o batelão vier muito carregado, é obrigado a descarregar para poder passar vazio pelo estreito canal e depois carregar de novo, o que atrasa a viagem em horas e exige um esforço redobrado. Não bastasse isso, acrescenta, há inúmeras dragas retirando toneladas de areia, impedindo a passagem das embarcações dos ribeirinhos.

Fosse apenas o baixo nível do rio, provocado pelo assoreamento, a situação do Rio Acre não seria tão grave, porque no período das chuvas, no "inverno amazônico", de novembro a maio, o nível das águas pode subir até a 13 metros. Outro problema tão ou mais sério é a poluição e neste aspecto o cenário é desolador, revoltante.

Ao longo das duas margens do rio, mais de cinqüenta bairros foram se formando, desde a década de setenta, quando ocorreu o êxodo rural em massa de seringueiros, com a substituição dos seringais pelas fazendas de gado. Das casas e palafitas, penduradas nas barrancas, num equilíbrio que desafia a lei da gravidade, escorre o esgoto a céu aberto diretamente para dentro do rio. No bairro da Base, um dos mais tradiconais e movimentados da cidade, a vida parou no tempo. No casario antigo, atingido pelas sucessivas cheias, só se vê placas de "vende-se".

No trajeto em que o rio corta a Capital, nesta época do ano em que está no nível mais baixo, a água transformou-se numa lama fétida, viscosa, sem vida. Não se vêm mais peixes de espécie alguma. Nem sapos ou cobras. Sem ter com que se alimentar, as aves aquáticas também sumiram.

"Até a cobra grande que morava na curva da Gameleira não agüentou o fedor e foi embora", diz o catraieiro Manoel Severino, numa alusão à lenda da "cobra grande" que alimentou o imaginário popular desde a formação da cidade, no começo do século passado.

Pelo menos neste trecho, o Rio Acre já morreu, confirmando que a previsão do geólogo Claudemir Mesquita, de fato, não é catastrófica.

Se não bastasse o esgoto, há outro fator de poluição ainda mais grave. Emborcada na areia, em um descampado onde pastam algumas cabeças de gado, pode-se ver uma lata do agrotóxico Tordon, um herbicida derivado do Agente Laranja que os norte-americanos usavam na Guerra do Vietnã. Segundo o geólogo Claudemir Mesquita, este desfolhante vem sendo usado pelos fazendeiros para combater as pragas das pastagens.

Como também não há nenhum cuidado em dar o devido destino a outros agentes poluidores. O colono Antônio Carlos conta que, na grande seca do ano passado, chegou a ver dez carcaças de bois ainda em carniça jogadas no leito do rio.

Algum visitante mais desavisado poderia se impressionar com as carrancas que sobressaem do filete de água, imaginando jacarés e outros animais que se vê nas novelas. Engano. São troncos de árvores e galhadas que a força das águas arrasta nas cheias e permanecem depois enterradas, apodrecendo nos bancos de areia.

Nem tudo, porém, está perdido. Ao construir a terceira ponte sobre o Rio Acre, para des-viar os caminhões de carga do Centro da cidade, o governador Jorge Viana fez questão de preservar no entorno da obra uma das poucas áreas verdes que ainda subsistem dentro da cidade. Em breve, deverá concluir também uma nova estação de tratamento de esgotos.

Ao mesmo tempo, a Secretaria Municipal de Meio Am-biente da Prefeitura de Rio Branco, junto com o Ibama, concluíram há poucos dias estudos técnicos para a limpeza e desobstrução das bacias hidrográficas do Riozinho do Rola e do Igarapé São Francisco, os dois principais afluentes do Rio Acre.

Temendo a repetição da grande seca de 2005, o governo do Estado, através do Instituto do Meio Ambiente (Imac) tomou este ano medidas mais drásticas: proibiu por dois meses (julho e agosto) todo tipo de queimadas, nas cidades e no campo, em toda a região do Vale do Acre, onde se concentram as grandes fazendas.

Ao mesmo tempo, o Imac, o Ibama e outros órgãos estão ensinando os colonos a fazer seus roçados para plantio sem o uso do fogo ou coivaras e treinando brigadas contra os incêndios.


O rio das "ferraduras"

Logo mais, em setembro, quando José Wilker, Alexandre Borges, Giovana Antonelli, Vera Fischer, Chris-tiane Torloni e outros artistas globais chegarem ao Acre para encarnar o aventureiro espanhol Luiz Galvez, o gaúcho Plácido de Castro e suas fogosas mulheres, talvez, tenham que esperar um pouco.


Se a novelista Glória Perez e o diretor Marcos Schechtemann quiserem dar mais realismo aos principais feitos que libertaram o Acre da Bolívia, na virada do século XIX para o século XX, terão que esperar pelo "inverno amazônico", no final de outubro, começo de novembro, quando as águas do Rio Acre subirem com as chuvas, para compor a minissérie sobre a História do Acre, "Amazônia - de Galvez a Chico Mendes".

Aliás, não é possível entender a saga de Galvez, que fundou o Estado Independente do Acre, sem disparar um tiro, a de Plácido de Castro ou a do ditador boliviano Mariano Melgarejo, que trocou com o embaixador brasileiro Regino Correia 500 mil km² de território boliviano por dois cavalos de raça, sem falar do Rio Acre.

Foi através das águas amareladas, barrentas do Rio Acre, e às suas margens, que se locomoveram, nos primeiros anos do século XX, esses personagens, tidos como heróis, para conquistar o Acre do domínio boliviano.

Nascido na fronteira do Acre com o Peru, passando nos fundos dos quintais da Bolívia, este rio de águas barrentas, atravessa toda a microrregião do Vale do Acre, corta Rio Branco, a Capital do Estado, e desemboca no legendário Rio Purus, do escritor Euclides da Cunha. É um rio caprichoso, que provoca superstições com suas incontáveis "ferraduras" a darem a impressão ao navegante que estaria voltando no mesmo ponto por onde passara horas antes.

Só a título de lembrança, foi na margem esquerda do Rio Acre, em Puerto Alonso, que depois passou a se chamar Porto Acre, que, em 1900, Galvez proclamou seu Estado independente e na ribanceira do rio construiu seu palácio imperial de paxiúba.

Foi também através do Rio Acre, dois anos depois, que Plácido de Castro chegou até Xapuri e na madrugada de 6 de agosto, ele e seu exército de seringueiros-guerrilheiros, surpreenderam um batalhão de soldados bolivianos ainda dormindo e tomaram a cidade.

"Es temprano para la fiesta", reclamou o comandante boliviano ainda de ceroulas, em alusão às festividades do Dia da Independência da Bolívia. "Não é a festa, comandante; é a revolução", respondeu Plácido de Castro.Também, nesta ocasião sem a necessidade de dar um tiro.

Na verdade, o surgimento das principais cidades amazônicas e sua civilização deu-se às margens dos grandes rios da região. No final do século XIX e sobretudo no começo do século XX, os rios eram o caminho natural e único por onde chegaram, primeiro, os aventureiros, depois os migrantes nordestinos para extrair o látex das seringueiras. Eram os rios que comandavam a vida (também a morte) na vasta região amazônica.

Foi também através dos rios que, com a exportação da borracha e sua alta cotação no mercado internacional, surgiram as cidades mais importantes da região. No fausto e desperdício formou-se o que os bons historiadores chamam de "civilização do látex". Manaus, localizada às margens do grande Rio Amazonas, chegou a ser chamada de a "Paris dos Trópicos", reproduzindo a belle èpoque francesa.

Nos barracões dos seringais, construídos no cimo dos barrancos, com telhas importadas da Europa, adornados em suas fachadas com lambrequins folheados a ouro, viviam os seringalistas ou "coronéis de barranco", formando a casta da "nobiliarquia barranqueira". Mesmo que essa riqueza e luxo tenham sido tão fugazes quanto os rolos de fumaça que su-biam no meio da floresta dos tapiris onde os seringueiros defumavam o látex. (S.M)

Um comentário:

Anônimo disse...

le aii... pro nosso trabaio