terça-feira, 2 de maio de 2006

NÃO CHORE MAIS!



Por Elson Martins

A lezeira amazônica - estou convencido - não é algo que deva evitar. Ela está em mim como porta de percepção das coisas que mais importam na vida: como não perder a capacidade de me emocionar. A ela recorro, por exemplo, quando me defronto com a dificuldade de produzir um texto que será publicado e lido por outras pessoas.

Algo assim ocorreu na inauguração da Usina de Arte de Rio Branco com a presença do ministro Gilberto Gil e do excepcional músico acreano João Donato. Estamos a uma semana ou mais do evento, mas só agora faço o registro, embora, como muita gente que lá se encontrava, também enxuguei lágrimas.

Em ocasiões como aquela, a lezeira me leva a um estado de espírito raro. Creio que levito, abro asas e voe procurando distanciamento; não para ir embora, sumir, mas para chegar mais junto e colar no que maior significado tem.

Li o que escreveram sobre a inauguração. Os jornalistas Altino Machado e Toinho Alves manifestaram em seus blogs: "foi imperdível ver Gilberto Gil e João Donato cantando e dançando juntos"!

Eu só imagino o que eles sentiram, porque, no exato momento, eu ainda não havia voltado do encantamento a que fui empurrado pelos meninos e meninas do Som da Floresta. Sim, as crianças da Célia Pedrina que vivem na periferia de Rio Branco e fazem seus próprios instrumentos a partir de raízes, troncos e cocos encontrados na mata, cantaram "Não chore mais" e o Hino Acreano com muita alma.

As duas composições, entremeadas, provocaram mirações na minha cabeça e no coração. Senti um impulso na garganta, os olhos liquefeitos, as pernas pedindo encosto na parede, até que comecei a correr na direção das nuvens. Creio que se passaram dez minutos de magia com efeito prolongado!

O que me aconteceu, presumo, foi um beliscão de ancestralidade e de florestania (ah! sei que o termo ainda parece oco para muita gente)... Devo ter enveredado por algum atalho para não perder a emoção, deixando-me levar por uma espécie de atavismo usando as veias como rédeas e estribo.

As duas composições a que me referi falam de tempos históricos distanciados que, entretanto, são tempos revolucionários, coincidentes, que podem ser revividos. Quando interpretadas com estilo (foi o caso) funcionam como bandeira que tremula a essencialidade.

Esses tempos - pensei - apontam para um Acre que nos faz lúdicos e que oferece uma luz para varrer o lado escuro da alma; uma luz que decora espaços e zumbe pelos cantos; enfim, uma luz que anuncia a existência de uma sociedade justa e humana ao alcance das mãos.

Estou falando de política, acreanidade, cultura, história, identidade, sustentabilidade, essas idéias e atividades importantes que inundam nosso cotidia-no mas deixamos escapar pensando, talvez, que independem de pequenos gestos (de cada um de nós) para acontecerem na forma ideal, prazerosa, criativa.

A Usina de Arte João Donato, que já foi usina de castanha, pode simbolizar isso: a possibilidade de envolver o imaginário com o real, dando forma a uma conquista coletiva. Se ainda não me fiz entender, insisto que ela representa a possibilidade concreta de continuarmos sendo um povo acreano com os nossos sonhos e a nossa essencial lezeira.

O ministro Gil e o músico Donato que me perdoem - como diria o saudoso poeta Vinícius de Moraes ao priorizar a beleza pela qual se deixava seduzir - mas, as crianças cantoras que interpretaram o lamento jamaicano e o Hino Acreano, daquele jeito, produziram o fundamental.

NOTA: O artigo do jornalista acreano Elson Martins, 66, colaborador permanente deste blog, foi publicado na edição de ontem do jornal A Gazeta. Quem quiser saber mais a respeito da Oficina Som da Floresta, a bela iniciativa tocada pela Associação Vertente, deve clicar aqui.

3 comentários:

Anônimo disse...

que inveja!

Anônimo disse...

Altino, boa tarde.
O texto é um dos mais lindos que já li, quase um poema de amor a essa terra que estou aprendendo a conhecer aqui neste maravilhoso blog.
Há palavras nele que nunca li e são belíssimas e o sentimento que transmite é o de sonho, de magia.
Adorei.

Beijos

Anônimo disse...

Ô Elson, no seu caso, leseira é falsa modéstia. Texto bão, home. Traduziu a emoção no talo. Li como se estivesse presente no evento. E olha que sou neófito em acreanidades, mano. Um abraço.