segunda-feira, 27 de março de 2006

O MARKETING CONTINUA

Felipão de saias no comando

Cláudia Malheiros é treinadora do Andirá, time do futebol do Acre

Robson Morelli

No dia 30, o Andirá entrará em campo depois de muito esforço para disputar mais um Campeonato Estadual. O clube conseguiu dinheiro para jogar a competição. De cara, terá parada indigesta, enfrentar o tetracampeão do Acre, o Rio Branco. Mas o Andirá está animado, pois no banco o modesto time terá Cláudia Malheiros, conhecida no Estado como o Felipão de Saias. É a única treinadora de que se tem notícia na Primeira Divisão do futebol brasileiro.

Cláudia, uma agrônoma de 40 anos, é carioca, casada com um angolano, mãe de duas filhas e aceitou ser treinadora do Andirá pela segunda vez. Ela já havia ocupado o cargo na temporada de 2000, quando tirou o time das últimas posições para levá-lo à quarta melhor campanha. Tentará a proeza mais uma vez, agora com mais experiência. "As pessoas aqui me chamam de Felipão de Saias e acho que faço jus à fama. Sou um pouco severa com o elenco, mas sei dar carinho, sou mãezona. Eles são carentes e às vezes dar bronca não resolve", diz a treinadora, que não pretende largar a agronomia enquanto estiver à frente do Andirá.

Cláudia tem coragem para assumir uma função tradicionalmente ocupada por homens, sobretudo numa região que nunca deu sinais de ser tão liberal e moderna assim. "A maioria das pessoas com quem converso me acha corajosa. Algumas mulheres me cumprimentam. Outras me olham assustadas com cara de 'como é que pode?' Levo numa boa. Sempre gostei de futebol. Meu pai me levava ao Maracanã para ver o Flamengo e até joguei com minhas quatro irmãs em times da escola. O futebol é uma das minhas paixões", explica a técnica, que conta com o apoio irrestrito do marido, que é torcedor do Porto, e das duas filhas.

O Estadual do Acre é curto - são três meses apenas. É ganhar ou morrer. Os jogadores do Andirá recebem salário médio de R$ 600. Jogam com a esperança de ser vistos e levados para outras praças mais bem estruturadas. O time jamais ganhou nada no Acre. Foi fundado em 1964. Abriu, fechou, reabriu e fechou várias vezes. Sobrevive com dificuldades. Cláudia, além de treinar a equipe, também foi fundamental para conseguir patrocínio para a atual temporada, pois o clube corria o risco de não atuar por falta de verba, como ocorreu em 2005.

A carreira de treinadora começou por acaso. Já morando no Acre e com fama de ex-jogadora, foi convidada para ser auxiliar de Ulisses Torres no Vasco da Gama local. O clube não ganhava nada havia 35 anos. Nas partidas finais do Estadual, o técnico foi suspenso e Cláudia 'comandou' a equipe. "Em três jogos, somamos cinco pontos e o Vasco saiu da fila. A cidade começou a falar de mim. Virei celebridade na Capital."

Dos tempos em que o pai a levava para ver os jogos do Flamengo nasceu outra paixão, por Zico. Mas Cláudia não vê mais partidas do Fla. Não tem paciência. Acha uma vergonha 'esses jogadores ruins' vestirem a camisa do clube. Quando jogava futebol em Itaguaí, interior do Rio, ficava incomodada com o que as pessoas diziam dela. "Ou era sapatão ou era menina de rua", conta. Foi se acostumando e dando de ombros para os comentários. Nunca foi menina de rua e está casada há 20 anos. As filhas moram com ela.

Para comandar os marmanjos do Andirá, usa disciplina e procura não inventar. "Todos me escutam, sou severa, mas mãezona. E não peço aquelas jogadas rebuscadas. Faço o simples com eficiência. Nada mais. Foi assim que, em 2000, o Andirá terminou o Estadual em quarto lugar", comenta, orgulhosa.

Na beira do gramado, ela não é de gritar, mas admite soltar a voz se preciso. Sem falar palavrão. Trabalha de agasalho. Nos jogos oficiais, vai usar calça jeans e camiseta. "Agora me deram chuteiras tamanho 37 para eu enfrentar melhor as condições do campo", diz. Trabalhar com homens parece ser uma sina. Como agrônoma ela sempre esteve entre peões de roça. E nunca sofreu por isso.

Também diz nunca ter encontrado um atleta seu de "bumbum de fora" no vestiário - expressão que ela mesma usa para se referir ao antes e depois das partidas. "Só entro no vestiário quando todos já estão vestidos. Sou de falar pouco e por isso passo pouco tempo lá dentro. Todos me respeitam."

Como qualquer treinador que se preze, Cláudia também está ansiosa para o início do Estadual. Quer ver os primeiros resultados do Andirá. Sabe que só voltará na próxima temporada se obtiver boas vitórias. E tem mais: por ser mulher, qualquer derrapada poderá lhe custar mais facilmente o emprego, além, claro, de ter de ouvir as provocações da torcida.

Fonte: O Estado de S. Paulo

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