sexta-feira, 6 de janeiro de 2006

SEGUINDO AS ESTRELAS

Por Antonio Alves (*)

Íamos passar vinte dias andando, de colocação em colocação, nos igarapés e riozinhos afluentes do Tejo, eu e mais dois caboclos seringueiros, Raimundo Capelão e Pedrinho do Milton. Pra alumiar o caminho, fizemos uma ayahuasca bem apurada, colocamos na garrafa e saímos acumulando histórias e mirações que vou levar anos pra contar.

Um dia, lá pelo meio da viagem, peguei o mapa e perguntei aos companheiros qual o nosso roteiro. E resolvi apressar o passo, porque havia uma colocação nas cabeceiras do Riozinho da Restauração com o nome muito sugestivo de Rainha do Sol: “vamos chegar lá no sábado, que num lugar com um nome desses deve ser bom pra a gente tomar ayahuasca”. Assim fizemos: cortamos caminho pelas serras, atravessamos um tabocal medonho em que tínhamos que andar quase de cócoras, mas no sábado estávamos na Rainha do Sol, bem no pé da serra que dividia com as águas do Tarauacá, onde o Riozinho era um fio d’água que as galinhas atravessavam sem molhar as penas.

Banho, alimentação adequada, roupinha limpa, rede passada e um caneco do líquido do cipó pra cada um. Ah, mas foi uma frustração só, noite adentro. Ao invés de miração, só o que me vinha na cabeça era uma fofoca horrorosa sobre o preço da borracha, a canoa furada, a praga que deu no roçado, as brigas intermináveis entre vizinhos, as enganações dos marreteiros, as mesquinharias mais miúdas que se possa encontrar num seringal. Nem rezar eu conseguia: antes que o pai-nosso chegasse na metade, a cabeça já estava pensando besteira. Dormi quase ateu, de tão contrariado.

No dia seguinte, perguntei aos companheiros como tinham passado. “Não consegui subir além da cumeeira da casa”, disse um deles. O outro, a mesma coisa: “não vi nada, e o pensamento ficou lá embaixo o tempo todo”. Não esperávamos aquilo da Rainha do Sol.

Porque lembrei dessa história agora? Porque o ano de 2006, que pra mim só começa depois de amanhã, quando terá passado o dia de Reis, até agora só mostrou miudezas. Passadas as festas, a casa está desarrumada, as contas acumuladas, os serviços públicos não funcionam e ninguém tem dinheiro pra nada. Indefinições no trabalho, as autoridades de férias, todo mundo de recesso, o orçamento do ano passado não fechou e o deste ano não abriu... Se ficar assim até o carnaval, que vai ser no final de fevereiro, daí teremos um ano muito curto, que começa em março e termina em setembro, três dias antes das eleições. Não sei se isso é bom ou ruim, mas não acharei agradável passar os próximos meses me preocupando com canoas furadas e borracha mal pesada.

Bem, depois de amanhã veremos. Tenho esperança de que a seqüência desta viagem seja tão boa quanto da outra. Depois de passarmos da Rainha do Sol, caminhamos mais alguns dias e chegamos ao igarapé Manteiga. Passamos uma noite na colocação Pão, onde morava o velho Ginú com sua grande família. Nada de ayahuasca, numa sala apertada com tantas redes de crianças ao redor.

Mas aí avistamos uma casa sem paredes, só assoalho e cobertura, a uns cinqüenta metros, que o velho estava construindo para seu filho que ia casar. Olhei para os companheiros e tivemos o mesmo pensamento. Atamos lá nossas redes e abrimos a garrafa da ayahuasca. Passamos a noite nas mais lindas e significativas mirações e fomos dormir felizes. As paredes da casa eram a floresta e o céu mais estrelado que se possa imaginar. Até hoje me surpreendo que na colocação Pão, do igarapé Manteiga, onde esperávamos apenas forrar a barriga e descansar o corpo, tivéssemos encontrado tanto alimento e aventura para o espírito.

Que os Reis do Oriente nos tragam um novo Ano Novo.

(*) O jornalista Antonio Alves escreve no blog O Espírito da Coisa.

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