domingo, 2 de outubro de 2005

LETÍCIA MAMED

Caro Altino,

Acho que até já nos esbarramos algumas vezes pelos blogs acreanos, mas nunca trocamos mensagens diretamente. Esta é a primeira, e com grande satisfação.

Embora estando fora de Rio Branco, do Acre, já há alguns meses, seria impossível não acompanhar o cenário de barbárie ambiental que se acirra nesta região.

Na última semana, um aluno meu do curso de jornalismo, aqui no Paraná, levou para debate em sala de aula a questão das queimadas na Amazônia, recolocando a discussão sobre a política de desenvolvimento sustentável.

O ponto de partida do aluno foi o seu artigo no Observatório da Imprensa, que o pessoal engajado do jornalismo acompanha com atenção.


Como a turma sabe que sou acreana e, principalmente, venho me dedicando às pesquisas sobre a Amazônia, todos viram em mim a “porta-voz” para explicar o que acontece hoje na região. O debate foi ótimo, afinal, pouco ainda se sabe a respeito do contexto amazônico e das suas particularidades, conforme você bem indicou no seu texto.

Mas concordo plenamente com a posição do professor Mário José de Lima. O fato desse desconhecimento sobre a Amazônia, dessa ausência de cobertura da imprensa sobre o quadro sócio-ambiental da região, não é fruto de um descaso ou desinteresse subjetivista da sociedade do Centro-Sul ou da grande imprensa brasileira.

Na verdade, isso tem uma base concreta de explicação: isso ocorre exatamente porque o processo de avanço da ocupação econômica, logo, da degradação ambiental, para garantir sua continuidade, precisa ser mantido encoberto, e assim, cultivar uma legitimação, se não direta, pelo menos indireta, ao seu curso.

Como sugere o professor, é inegável que os governos da Amazônia estão capturados pelos interesses do empresariado da fumaça, e este é o centro da questão. Nossa crítica deve começar a questionar os próprios governos regionais em relação aos procedimentos e condutas por eles adotados nesse processo e, naturalmente, a força da nossa articulação política exigirá a devida atenção da sociedade e da mídia.

Como entender, por exemplo, a surpresa brasileira (e acreana) com a repercussão internacional do assassinato de Chico Mendes? Não seria exagero dizer que a burguesia nacional começou a despertar para a seriedade da questão ambiental no Brasil quando o Banco Mundial, pressionado pelas organizações não-governamentais dos países do Norte e diante do inegável desastre de projetos de desenvolvimento que vinha financiando, passou a bloquear alguns empréstimos.

Foi preciso, em suma, que a devastação da floresta amazônica e o lamentável tratamento da questão indígena fossem contestados em instituições financeiras internacionais para que internamente as frações burguesas condutoras da nossa política institucional principiassem a perceber a existência de um problema.

Hoje, o problema vem se acirrando cada vez mais e tentar ignorá-lo, como ainda tenta o nosso Governo da Floresta, é ficar na contramão da história.

Medidas paliativas, atos meramente institucionais, tentativas de culpabilização de outros governos pelo problema, além de inócuas campanhas publicitárias, tudo isso tem demonstrado uma ação absolutamente limitada ante o aprofundamento da crise social e ambiental.

Evidentemente, o exercício da crítica na sociedade em que vivemos é algo constantemente tolhido e reprimido, mas este é o nosso grande desafio.


Atenciosamente,

Letícia Mamed, de Londrina (PR).

Nota do blog: Existe uma comida típica do Pará, a maniçoba, que é deliciosa, mas de aparência torpe. Parece uma feijoada na qual se substituiu o feijão por cocô de boi. Não sei se você acha maniçoba tão repugnante quanto achei quando a vi pela primeira vez e não tive coragem de experimentá-la. Pra quem não conhece: a maniçoba é feita de maniva moída e cozida durante oito dias. Depois a gente adiciona sal e ingredientes a gosto: carne assada, charque, toucinho branco, toucinho defumado, costela defumada, bucho, orelha, chouriço, paio etc. E é necessário cozinhar todas essa mistureba por mais dois dias. Andei debatendo sobre essas questões durante a semana e chegue à seguinte conclusão: jornalismo é feito maniçoba: quanto mais ferve e cozinha, mais delicioso fica. Letícia, já faz um tempo que gostaria de obter seu e-mail. Envia para altinoma@uol.com.br. Agradeço sua manifestação. Inté!

Um comentário:

Anônimo disse...

Caro Altino,

também a mim incomoda a postura que, no limite, é preconceituosa de muitos dos que transitam pela Amazônia. Isso não se limita a um ou outro campo profissional. Tenho identificado isso em muito "pesquisador". Esse distanciamento, Altino, é elemento que está na raíz das questões que você levanta em seu texto. O resto do Brasil não se identifica com a Amazônia.

Dos pensadores nacionais de expressão, apenas Celso Furtado reclama para a questão regional, notadamente para o Nordeste, um enfoque nacional. Outros, limitam-se a explicar o atraso regional pelo próprio atraso. O paulista se creditam a posição mágica de herdeiros das tradições civilizatórias da Europa. A caboclada, essa é atraso só.

Hoje, conversava com meus filhos a propósito dos trabalhos de alguns diretores e dos responsáveis pela fotografia de alguns filmes. Comentando algumas passagens, concluíamos sobre a necessidade de cada diretor ou responsável pela fotografia conhecer em profundidade a história filmada, seus personagens - principalmente os personagens centrais - para chegar a bom resultados.

Dos maus exemplos, lembrei da recente série Mad Maria, da Globo, sobre a Estrada Madeira-Mamoré. Durante todo a parte das cenas retratando a vida em Rondônia, ou seja, na Amazônia, predomina um certo amarelo, sinal de muita luminosidade.

O diretor e o responsável pela fotografia conhecem a Rondônia de hoje e não se deram ao trabalho de compará-la com a Amazônia de 100 anos atrás. Seria comparar uma Amazônia onde predominava as florestas típicas da região com os espaços sem cobertura vegetal da atualidade.

Teriam sido bem sucedidos se conseguissem se embrenhar numa floresta intacta. As cenas seriam sombrias. Teriam aprendido que em "floresta fechada", o sol demora a aparecer e deita muito cedo. Prevalecem as sombras e a sensação de um verde escuro que jamais termina.

O artista plástico Ivan Campos, filho do Cícero Moreira, só conseguiu retratar a Amazônia quando abandonou o colorido tipo Disney. Chegou a bom termo em retratar as nossas florestas num belíssimo quadro que ilustra uma parede no gabinete do governador Jorge Viana.

Pois então. Usei teu artigo como para meus filhos, todos amazônides, como uma mostra do que esse pessoal não consegue apreender da realidade regional.

Abraços,

Mário Lima