sexta-feira, 10 de junho de 2005

MEU CARO AMIGO

Mário José de Lima

Um cigarro fumado sofregamente, a fumaça lançada para cima e pelo canto da boca e a tosse seca limpando a garganta formavam o tempo de uma parada em alguma fala sobre algum “causo” ou alguma conversa séria mesmo. Foram muitas as estórias que ouvi. Algumas, relatos bem humorados, às vezes hilariantes mesmo, lembranças acreanas, eventos envolvendo muitos e muitos velhos bons companheiros da juventude vivida em Rio Branco.

Viver no Acre – viver o Acre –, depois da formação universitária, fora decisão que resultara da abdicação de uma carreira bem sucedida em funções de procuradoria como membro de uma elite de profissionais do Direito numa metrópole, centro cultural do país, o Rio de Janeiro. No Acre, foi profissional requisitado e competente. O Acre ficou a dever-lhe o reconhecimento maior da sua trajetória e da sua qualificação profissional, quando lhe foi negada a nomeação para compor o Egrégio Tribunal de Justiça. Sobre isso, no entanto, pouco falava e quando falava evitava qualquer mágoa. Tudo bem, dizia, não deu por vontade de uma única pessoa. Afinal, fora indicado.

Muitas vezes, numa oportunidade em que dividíamos os espaços de trabalho, chegava sério – nessas horas o cigarro era queimado numa incrível velocidade – mantinha-se calado para, em seguida, chamar para conversarmos. Começava a conversa através de alguma questão, de alguma indagação. Sentia-me meio encurralado, nesses momentos. Afinal o que responder? Ele tinha consciência da minha admiração por sua extraordinária capacidade de organizar as idéias de forma rigorosamente lógica, além de ser muito bem informado sobre os mais variados temas. Seus textos, entretanto, eram marcados pela simplicidade. Nada rebuscado ou capaz de tornar opacos seus raciocínios. Era isso que buscava mesmo quando se tratava de um texto marcadamente técnico. Muitas vezes acompanhei seu trabalho na montagem de alguma peça numa máquina de escrever das antigas. Não usava borracha e o texto era produzido de uma única sentada.

Assisti, certo dia, uma determinada sessão do júri popular. Ainda não o conhecia de perto. Na abertura da fala da defesa, recitou, por cerca de uns vinte minutos, no original – ou seja, em inglês, um texto de Shakespeare. Ficamos todos, na sala do Tribunal do Júri, boquiabertos sem entender o que acontecia – muito menos o que ele dizia. Esse julgamento era resultado de um recurso na qual a sentença do juiz apoiava-se numa longa citação do Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós, que, segundo seu ponto de vista, nada tinha a ver com o caso julgado, assim como sua citação shakesperiana.

A nossa amizade avançou a ponto de um dia eu ser surpreendido por fazer-me seu confidente, num momento de alguma tensão. Faz algum tempo, tomei consciência de como esses momentos foram alguns dos mais importantes de minha vida. Isso se repetiu algumas vezes. Também, algumas vezes, instigado por algum dos artigos que publiquei em algum jornal de Rio Branco, procurou-me para conversas que se estendiam sobre política e economia. Nessas horas o ar sempre brincalhão cedia lugar para perguntas diretas. E nesse particular também sempre me surpreendia: era um ouvinte atencioso. Quando questionava, o fazia de forma simpática, não agressiva, posso até dizer respeitosa. Era exatamente o contrário do brincalhão que desmontava seus oponentes, nas rodas de gamão, do cafezinho ou em alguma redação de jornal onde havia sempre um espaço para seus textos bem humorados e marcados por uma ironia fina.

Naquilo que produziu para a imprensa diária ficou sua marca de cronista bem antenado: uma crítica bem humorada, uma ironia fina e muita, muita capacidade criativa na formulação dos seus textos. O Toinho lembrou num texto em seu blog – O Espírito da Coisa – de duas criações suas que marcam época: Madame Janete e a Balsa para Manacapuru. A balsa é a expressão do resultado eleitoral a assombrar candidaturas acreanas: a derrota. Na sua atuação jornalística compôs com Rufino Vieira, Foch Jardim, Edison Martins, Garibaldi Brasil, José Leite uma geração acreana de jornalistas a marcarem época.

Quando estive no Acre, no início de 2004, fui a Brasiléia, onde escolhera viver nos últimos anos. Fazia tempo que não nos víamos. Sua reação ao ver-me e forma como me cumprimentou ainda hoje me emocionam. Tinha sofrido um terrível acidente que lhe desfigurara o rosto e usava um tapa olho para poder usar o resto de visão que lhe sobrara. Abraçou-me, dizendo, “Mário, meu filho, quanto tempo... que bom te rever”. Puxou-me pelo braço para seu pequeno gabinete na Prefeitura de Brasiléia e ficamos um bom tempo conversando.

No dia seguinte, visitou-me na casa do meu pai. Nesta viagem, foi a última vez que vi meu pai, também, foi a última vez que vi meu amigo Aloísio Macedo Maia.

Hoje, dia 09 de junho, meu irmão Jesús Lima telefonou-me para avisar que Aloísio Maia dera por encerrada sua estada entre nós. Lamento não poder estar presente, nesse momento, para lhe beijar a fronte em despedida. Agora, estará ao leme, não mais de uma lancha, nem pelos rios da Amazônia, mas em alguma nau encantada, algo como uma belíssima caravela, com velas esfumadas pelos ventos eternos da nossa saudade imensa, cruzando os mares da eternidade.

Seus amigos, seus filhos, quem o conheceu estaremos todos mais tristes e nosso Acre, certamente, mais pobre, pela perda.

Um comentário:

Anônimo disse...

Ouvir (ou ler) Gabeira é sempre ótimo. No entanto, é preciso haver equilíbrio entre sua fala e a fala-ação do PT-poder. Não me sinto seduzido a tocar no extremo. Para mim, o PT-poder não é igual a outros partidos, mas também não consegue apresentar à população a marca da diferença. Há uma parte da entrevista que me chamou atenção: Gabeira usou bicicleta para chegar ao Congresso. A essa simplicidade possível, o PT, hoje, se mantém distante.