terça-feira, 9 de novembro de 2004

UM PARECER HISTÓRICO

Da Câmara de Assessoramento Técnico-Científico
sobre o uso religioso da ayahuasca

Importa destacar os seguintes aspectos analisados pela câmara:

a decisão do INCB (International Narcotics Control Board) das Nações Unidas, sobre o chá denominado ayahuasca;

a importância do enfoque bioético e a compreensão da autonomia individual no exame da questão;

o uso da ayahuasca por crianças e mulheres grávidas;atribuição para decidir pelo uso ou por sua interdição parcial ou total;

a questão do uso da ayahuasca com finalidades terapêuticas e o estímulo a pesquisas clínicas;

o exame de eventuais fatos novos, sobre o uso da ayahuasca, cujos aspectos substantivos não tenham sido, ainda, analisados em decisões anteriores do CONFEN ou do CONAD, desde a Resolução n° 06, de 04/02/1986, do CONFEN ;

o exame de restrições diretas ou indiretas ao uso

religioso da ayahuasca

Ponto n° 1 - Ao examinar a questão do uso da ayahuasca a partir de uma visão multidisciplinar, que soma saberes, interdisciplinar, pela qual os saberes se complementam e transdisciplinar, que serve, como observa Antonio Moser, de “chave interpretativa capaz de responder aos problemas levantados pela análise inter e multidisciplinar”, é ponderável registrar que o INCB (International Narcotics Control Board), da Nações Unidas, relativamente à ayahuasca, afirma que, sendo a planta utilizada praticamente in natura não cabe nenhum controle, acrescentando que não haverá controle das plantas usadas em forma de chá, segundo a opinião do INCB, pois não há purificação, concentração ou isolamento de substâncias.

Ponto n° 2 - Deve ser ressaltada a relevância da bioética no exame do uso da ayahuasca, haja vista que entre os princípios fundamentais que a norteiam sobressai o “princípio da autonomia como uma espécie de princípio primeiro e fundante de uma nova postura global”, apontando para a importância da decisão individual, devidamente alicerçada, entretanto, na mais ampla gama de informações, prestadas por profissionais das diversas áreas do conhecimento humano, pelos órgãos públicos e pela experiência comum, recolhida nos diversos segmentos da sociedade civil. Trata-se do direito da pessoa a ser informada, para a tomada segura de decisão individual ou pelo círculo social-familiar. É indispensável, porém, ressaltar a dimensão axial da sociedade para o correto entendimento do princípio da autonomia que, portanto, não pode ser absolutizado. A propósito, observam com inteira propriedade Cohen e Marcolino que “assim como não nascemos éticos, nos tornamos ético no nosso processo de humanização, também não nascemos autônomos. A autonomia nunca será total, para qualquer ato social, nem permanente, ou seja, não podemos afirmar que ela, uma vez alcançada, não poderá ser mais questionada, pois ela será sempre autonomia para certas coisas, portanto, poderá variar durante a vida do indivíduo, a autonomia é um atributo que a sociedade outorga ao cidadão”.

Ponto n° 3 - O uso da ayahuasca por crianças e mulheres grávidas e a atribuição para decidir sobre as condições desse uso, ou sobre níveis de restrição ao mesmo, é tema que, coerentemente com as premissas postas nos pontos 1 e 2, supra, somente pode ser avaliado num contexto em que os diferentes saberes se complementem e preservando-se, embora, a especificidade de cada disciplina, seja possível transcender o seu âmbito próprio, para “responder aos problemas levantados pela análise inter e multidisciplinar.” Avulta, cumpre reiterar, o direito à decisão individual informada. Ainda, é indispensável “levar em conta o saber detido pelo grupo de usuários”, como anota Edward MacRae. Assim, é essencial levar “em consideração as situações concretas das pessoas, e até mesmo contingências históricas”, parecendo ter influência definitiva na decisão sobre o tema, o exame da quantidade ministrada e do seu valor ritual e simbólico. O exercício do poder familiar (art. 1.634 do Código Civil em vigor, anteriormente chamado de “pátrio poder”) abarca um campo amplíssimo, comprometendo os pais na adequada criação e educação dos filhos, sujeitando-os à perda desse poder em caso de abuso de autoridade ou falta aos deveres que a lei lhes comete. Vale reiterar a advertência de Cohen e Marcolino, que não se pode afirmar que a autonomia “uma vez alcançada, não poderá ser mais questionada”, pois ela é “um atributo que a sociedade outorga ao cidadão.” Assim, exemplificativamente, o uso indevido, pelos filhos menores, de qualquer substância, bebida, alimento ou medicamento, em qualquer que seja a hipótese, pode gerar responsabilidade civil e penal para os responsáveis, além da perda do poder familiar. O exercício de poder familiar constitui, assim, elemento de superlativa importância que não pode ser afastado na equação do problema.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069, de 13/7/1990) prevê que o direito à liberdade assegurado à criança e ao adolescente compreende “crença e culto religioso” (art. 16, III) e acrescenta que “No processo educacional respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade de criação e o acesso às fontes de cultura.” (art. 58).

A participação da criança e do adolescente no culto religioso de seus pais está ligada, intimamente, ao estabelecimento, pelos mesmos pais, do nível dessa participação pela qual são responsáveis, levando em conta - além das condições físicas e psíquicas peculiares à fase de desenvolvimento e estruturação da personalidade - os valores culturais, próprios do contexto social da criança e do adolescente. Posta a questão de forma ampla: os rituais de passagem, os jejuns ou abstinências, mais ou menos rigorosos, as mortificações ou penitências, de modalidades diversas e variada intensidade, constituem práticas de transcendental importância, integrantes das religiões aceitas e, por todas as justas razões, acatadas por nossa sociedade. O temperamento dessas mesmas práticas, porém, vai buscar sua fonte na família, na sociedade e na autonomia individual, sendo impossível e até mesmo indesejável uma intervenção onipresente, onividente e onisciente do Estado.

Pelas razões expostas e considerando mais o enfoque bioético e os princípios que o informam (“princípios” aí entendidos como “fontes” ou “origem”), o uso religioso deveria permanecer como objeto de recomendação aos pais e grávidas, no sentido de que seriam sempre responsáveis pela interdição completa ou parcial do consumo, e nesse último caso (de restrição parcial), que o uso seja em quantidades mínimas e compatíveis com a preservação do desenvolvimento e a estruturação da personalidade do menor e do nascituro. A atualização da pesquisa sobre o tema deve levar em conta a perspectiva biopsicosocial.

Ponto n° 4 A questão da utilização da ayahuasca “para finalidades terapêuticas” tem íntima ligação com a posição já firmada pela Câmara de que é fundamental estimular estudos do chá, realizando inclusive pesquisas clínicas. É sabido de todos o monumental poder fitoterápico da floresta amazônica, a maior farmácia natural do planeta, a despertar o interesse e a cobiça, de toda ordem, interna e externamente. Obviamente, sobressai, neste contexto, a importância da ayahuasca e “o interesse de grandes indústrias farmacêuticas por seus segredos e o desenvolvimento de numerosos remédios baseados em preparados de origem indígena”, como observa MacRae, no trabalho antes citado (“O uso ritual de substâncias psicoativas na religião do Santo Daime”), quando enfatiza que todo “o ritual é um componente essencial dos sistemas populares de cura”.

Não pode mais o Brasil refestelar-se na sua extraordinária pujança fitoterápica sem pesquisá-la, em benefício de seu povo e da humanidade, ou, provavelmente, correremos o risco de que outros o façam, nem sempre animados por tão nobres objetivos. A Câmara propõe o estudo do uso terapêutico da ayahuasca, em caráter experimental, a ser, prontamente, iniciado, mediante a constituição de um grupo de trabalho.Tal grupo seria formado por representantes das áreas que atendessem, entre outros, aos seguintes aspectos: antropológico, farmacológico/bioquímico, psicológico, social, psiquiátrico e jurídico. Integrariam, também, o grupo, dois representantes das comunidades usuárias da ayahuasca. As indicações seriam realizadas após prévio diálogo entre as respectivas áreas acadêmicas.

Ponto n° 5 - Há mais de dezoito anos, pela Resolução n° 06, de 04 de fevereiro de 1986, do CONFEN, foi suspensa, provisoriamente, a inclusão na lista da DIMED, da espécie vegetal - Banisteriopsis caapi – que integra a ayahuasca, situação que, posteriormente, se tornou definitiva, constando da ata do CONFEN, publicada no D.O. de 24/8/1992, a reiteração, aprovada por unanimidade, das conclusões do relatório final sobre a matéria, de 1987, no sentido de manter excluídas das listas da DIMED, ou do órgão competente, as espécies vegetais que integram o chá. Assim, o uso ritual da ayahuasca passou a ser regulado legalmente, por intermédio do órgão competente para tanto. Além dessas decisões, o CONFEN recomendou, em 1995, interdições ao uso do chá por pessoas com distúrbios mentais e por menores, matéria de que se tratou no ponto n° 3, supra. Desde então, não parece ter havido fatos novos, cujos aspectos substantivos ou essenciais não tenham sido, ainda, analisados pela Administração Pública, através da instância própria. As abordagens referidas nos pontos anteriores explicitam os pareceres supracitados e com eles são compatíveis, havendo, portanto complementaridade, razão pela qual devem ser mantidos aqueles pareceres , aditados com as novas abordagens.

Ponto n° 6 - Tendo em vista as “Sugestões sobre o conteúdo do relatório sobre o uso ritual da ayahuasca”, encaminhadas pelo integrante da Câmara Edward MacRae, cumpre registrar a observação, constante de suas “sugestões”, de que, não obstante o uso ritual legalizado da ayahuasca pelas diversas comunidades religiosas, há “outras maneiras de coibir suas atividades e expansão. Assim, passa-se a dificultar a produção e distribuição de seu sacramento central...dificulta-se o transporte do chá para localidades fora da Amazônia mediante a exigência do cumprimento de complexos trâmites burocráticos.” Em face destas observações, tendo em vista que o CONAD é o órgão normativo do Sistema Nacional Antidrogas –

SISNAD – e que suas decisões “deverão ser cumpridas pelos órgãos e entidades da Administração Pública integrantes do Sistema” (arts.3°, I, 4°, 5°, II e 7°, do Decreto n° 3.696, de 21/12/2000), a Câmara propõe ao CONAD que fique registrado em ata, para fins, inclusive de utilização pelos interessados, que não pode haver restrição, direta ou indireta, às práticas religiosas das comunidades, baseada em proibição do uso ritual da ayahuasca, tendo em vista as decisões do colegiado, especialmente as referidas no ponto n° 5, supra.

CONCLUSÕES

· a Câmara ratifica as decisões anteriores do Colegiado, com os aditamentos do presente parecer, conforme referido no ponto nº 4;

· recomenda-se a consolidação, em separata, de todas as decisões supracitadas, para acesso e utilização dos interessados;

· a liberdade religiosa e o poder familiar devem servir à paz social, à qual se submete a autonomia individual;

· deve ser reiterada a liberdade do uso religioso da ayahuasca, tendo em vista os fundamentos constantes das decisões do Colegiado, em sua composição antiga e atual, considerando a inviolabilidade de consciência e de crença e a garantia de proteção do Estado às manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, com base nos arts.5°, VI e 215, § 1° da Constituição do Brasil, evitada, assim, qualquer forma de manifestação de preconceito.

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