quarta-feira, 27 de outubro de 2004

AULA DE AMAZÔNIA

Marcos Sá Correia

“O que estou querendo dizer aqui é que temos de ficar espertos”, avisou o professor Carlos Peres, no meio de sua conferência sobre “Conservação da Biodiversidade: ciência atual e perspectivas”. Espertos, em primeiro lugar, para não se confundir com o título da palestra que o programa anunciava para a manhã de quarta-feira no IV Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação. E espertos, sobretudo, para perceber, às oito e pouco da manhã, que Peres estava despejando sobre o auditório, numa velocidade que mal deixava a platéia ler de alto a baixo os slides projetados pelo computador nos telões do auditório, uma avalanche de informações inéditas sobre o tal do desenvolvimento sustentável, pedra de toque do Ministério do Meio Ambiente para salvar a Amazônia via governo Lula.

Tudo ali soava a novidade, talvez porque, como ele mesmo explicou, não eram dados de proveta, gerados em laboratório por gente que mal tira o avental branco. “Tem que sujar a bota no mato”, recomendou aos interessados em lhe seguir os passos. Mas também não eram produtos do puro empirismo militante nos seringais do Acre, como a doutrina oficial que levou as reservas extrativistas para Brasília, na bagagem da ministra Marina Silva. Peres é paraense. Seu pai foi o maior exportador de castanha-do-Pará no mundo por mais de 35 anos. Como pesquisador, morou em cabana com teto de palha na floresta. E entre as imagens que ele mostrou havia, além de gráficos e tabelas, seu próprio retrato em preto e branco, ainda menino, com uma castanha nas mãos.

Mas Peres não ficou nisso. É professor de ecologia tropical na universidade de East Anglia, na Inglaterra. Tão aclimatado ao meio acadêmico internacional que, no fundo de seu português, há um leve sotaque anglófono. Quando pronuncia “Brâsil”, por exemplo. Ou quando solta no meio de um longo improviso em português a palavra “rapids” e corrige imediatamente para “corredeiras”. Graças à revista Time e à rede de TV CNN, virou o milênio com o título de ambientalista do século. Não trouxe nada escrito para Curitiba, onde por sinal mora uma irmã que ele não via há quase dez anos. Mas tem cerca de 140 trabalhos publicados sobre o assunto de sua palestra.

E que palestra! Peres veio simplesmente dizer que a ocupação sustentável da Amazônia pode servir para muita coisa, inclusive para deixar que a região apareça bem nas fotografias de satélite. Mas torna a longo prazo a floresta insustentável. Num ritmo menos agressivo e muito mais simpático que o dos grandes projetos de criação pecuária e outras fórmulas de devastação acelerada, sem dúvida. Sob o dossel de árvores que ajuda a preservar, as reservas extrativistas e as terras indígenas extinguem a mata de baixo para cima, numa escala que só a pesquisa científica é capaz de medir e prever a tempo.

Domingo, naquele palco, a ministra do Meio Ambiente fizera questão de deixar claro, elevando a voz de tom metálico, que para o governo a saída da Amazônia são as reservas de uso sustentável. Três dias depois, Peres reconheceu que esta é a tendência, não só do Brasil como do mundo, para dar a volta no problema da conservação sem passar pelas resistências políticas do imediatismo social. Na Conferência Mundial de Parques do ano passado em Durban, África do Sul, o secretário-geral da ONU Kofi Annan congratulou o planeta pelas 100 mil unidades de conservação criadas nos últimos dez anos. Melhores do que nada, elas hoje cobrem mais de 11% da Terra. Mas se trata cada vez mais de reservas de uso sustentável, uma combinação quase mágica de dois substantivos que não concordam um com o outro – pois reserva é o oposto de uso – e um adjetivo cujo sentido ainda não foi comprovado. Mas é nele que “está o maior potencial de expansão das áreas protegidas, pelo menos do ponto de vista legal”, Peres reconhece.

O problema é que a Amazônia tem uma longa história de extrativismo. E seus efeitos nem sempre são visíveis a olho nu, porque até agora se diluem naquela imensidão continental. A não ser quando fura a barreira de isolamento da região e emerge nas manchetes dos jornais um caso exemplar, como o do perfume Chanel No. 5, aquele que Marylin Monroe usava para dormir. Em sua fórmula entrava um extrato de pau-rosa, uma essência amazônica. E o pau-rosa sumiu. Em agosto o The New York Times publicou uma reportagem contando por que o Brasil perdeu para a Bolívia a velha liderança no mercado mundial da castanha-do-Pará. É que essa castanha, como seu próprio nome proclama, começou a ser explorada há mais de cem anos na Amazônia oriental. Ao longo do século, deixando para trás os lugares que ela mesma empobrecia, sua indústria foi marchando para oeste, até atravessar as fronteiras do Peru e da Bolívia.

Contada assim, a história já serviria como advertência para os devotos do extrativismo politicamente correto. Mas, traduzida por Peres em curvas e números, ela se torna muito mais difícil de ignorar. Por isso é melhor ficar esperto para não perder de vista o que pode estar acontecendo lá no fim do mundo, sob a cobertura da floresta. Formalmente, 4,3% da Amazônia ficam hoje em reservas. São 80 milhões de hectares mais ou menos defendidos do avanço das frentes de colonização. E a ministra anuncia que vêm aí mais 500 mihões de hectares, como Florestas Nacionais, terras indígenas, reservas extrativistas e, “também”, unidades de conservação propriamente ditas.

É notícia para se festejar. “Algumas reservas indígenas fazem um trabalho de fiscalização em suas terras muito melhor que o do Ibama ou dos serviços estaduais de proteção ambiental”, Peres ressalva. Os caiapós no Pará chegam a bancar sobrevôos de suas reservas, para ver se tem cara-pálida pulando a cerca. No Xingu, a soja empareda a mata com tanta avidez, que o limite da reserva indígena é uma fronteira de linha geométrica, traçada em verde escuro pela selva. São coisas que o Estado brasileiro conservou, gastando pouco mais do que tinta em papel.

“Mas será que elas vão garantir o futuro da floresta?” – pergunta Peres. Pior que incerto, este futuro é sombrio, embora essas sombras se projetem no horizonte invisível de uma terra de ninguém, povoada pelos mandatos de gerações que ainda nem pensaram em entrar na política. Numa Amazônia que vai encolhendo à taxa anual de 1,9 milhão de hectares, qualquer paliativo parece uma solução. Mas, debaixo da faixa de desmatamento que o INPA monitora muito bem, acontecem coisas que da órbita terrestre os satélites não enxergam, como caça, fogo rasteiro ou extração de outros produtos vegetais que não a madeira. E tudo isso muda a floresta.

Em que medida? Peres dá dois exemplos. Primeiro o da castanha, estudada em 23 áreas de exploração “sustentável”. A Bertotlethia excelsa não só é a maior árvore da Amazônia – na base, chega a 18 metros de perímetro – como uma das principais fonte de sustento de populações inteiras. Está no mercado internacional desde 1900. E até hoje, de todas as castanhas que viraram produtos comerciais, é a única que é toda tirada da natureza. O trabalho do homem é colhê-la. Quem planta castanha-do-Pará é a cotia, numa das associações mais íntimas já estudadas entre um bicho e uma planta.

Combinando todos os fatores mensuráveis, uma equipe multinacional de pesquisadores, capitaneada por Peres, apurou o que está acontecendo nas áreas de colheita das castanhas. Em cada uma delas, a estrutura etária pode variar muito. Mas essa variação parece menos aleatória quando se arruma numa linha do tempo. Quanto mais antiga a convivência com castanheiros, mais velhas são as árvores de uma área. Sinal de que elas param de se reproduzir, quando suas sementes vão de preferência para outras bocas que não a da cotia.

A reprodução das castanheiras amazônicas passa por um gargalo estreito. Ela tem que gerar em média cem mil sementes para fazer um broto. A semente que vinga quase sempre foi enterrada por cotia. Depois disso, ela só cresce em clareira. Quando tem o tamanho de um arbusto, vira comida de anta. Pode viver mil anos. Mas tem uma infância difícil. Há lugares pesquisados pela turma de Peres, como a reserva extrativista do Rio Cajari, em que todas as castanheiras são adultas. Sinal de que ali a floresta está caducando.

O outro indicador de problemas futuros é a fauna cinegética. Quer dizer, a caça de subsistência. Cento e cinqüenta mil toneladas de proteína animal são tiradas por ano da Amazônia. Vão parar na dieta de populações que não poderiam comer a mesma quantidade de carne, se tivessem que convertê-la pela cotação do quilo de boi. É uma tradição consagrada pelo tempo entre índios e caboclos. Mata cheia de caça, no dialeto regional, chama-se “boa de rancho”. As populações tradicionais da Amazônia matam de preferência bicho grande. Anta, por exemplo. Só vão atrás do pequeno, que geralmente é mais esquivo, quando o outro começa a faltar. E ele está faltando. Há grandes áreas no meio da selva fechada onde a média de peso dos animais não passa de um quilo.

Na Amazônia, não há preconceito contra a carne de macaco. E ela não é fácil de repor depois que vai à mesa. Uma fêmea de macaco-aranha “muito bem-sucedida” consegue ter no máximo, numa longa vida, “três ou quatro crias”. E até entre os índios certos hábitos estão mudando. Em outros tempos, quando um lugar se despovoava de animais, a aldeia se mudava para terras de caça abundante, largando para trás um território que a fauna nativa podia repovoar aos poucos. Agora muitas aldeias indígenas têm coisas como antenas parabólicas, que são difíceis de transportar pelo meio do mato. Tornaram-se ao mesmo tempo mais sedentárias e mais exploratórias. Há dez mil rios na Amazônia. A maioria é navegável. Um caçador vai muito longe pelos caminhos naturais dos cursos d’água. E isso aparece nos gráficos da fauna amazônica.

Os caiapós, por exemplo, insistem em caçar queixadas e antas. E o resultado é que os bichos morrem lá dentro em proporções dez vezes maiores do que o limite biologicamente sustentável. Sem falar que vendem madeira nativa a preço de banana. Isso numa reserva sustentável. Fora das terras indígenas, a população humana da Amazônia está crescendo em ritmo muito mais acelerado que a média de expansão demográfica do país. Certos municípios da região incham 30% ao ano. Pelo menos 298 municípios da bacia amazônica já têm mais de uma pessoa por quilômetro quadrado. Um único índio precisa de cem vezes isso para manter seu estilo de vida tradicional à custa da floresta, mesmo com baixo nível de consumo. Não é preciso ir muito longe para ver que a conta não fecha.

Num Brasil onde há quase dois anos a política ambiental é tratada como dogma de fé, 50 minutos de palestra do professor Carlos Peres são ao mesmo tempo um alívio e um aperto. A Amazônia pode estar pior do que se pensa. Mas, pelo menos, ouvindo-o, se pensa.

Fonte: O Eco

Nenhum comentário: