segunda-feira, 21 de julho de 2008

A ÚLTIMA TRINCHEIRA

Fátima Almeida

Quando crianças, aprendíamos a ler as horas com base no movimento do Sol. As professoras do curso primário desenhavam um relógio com os ponteiros orientados pelo Sol. Os astros constituem o nosso paradigma universal. Os relógios foram criados para medir a duração do tempo e não para determiná-lo.

Hoje em dia, quase ninguém mais olha para o céu para simplesmente olhar as estrelas, no entanto, foi com base nelas que os egípcios tornaram-se geômetras, astrônomos, médicos e construtores das fabulosas pirâmides.

Os árabes foram prodigiosos na matemática porque habitavam os desertos e deitados obtinham do céu a fonte para seus descobrimentos e invenções. A astronomia é a primeira ciência. Com base nela foram criados os tais instrumentos para navegação e assim, do deserto para o Atlântico, o mundo se fez e nunca mais descansou.

O professor Frank Batista, em "A hora certa da consulta popular", neste blog, tocou num ponto muito importante em toda essa questão: o sagrado. Sempre ouvi falar de certas “orações fortes” que se rezam no “pino do meio-dia”.

Desde criança acompanho o movimento religioso da Ave Maria, sempre às seis da tarde. Um livro, best-seller nos EUA há alguns anos, tem por título “O Demônio do Meio Dia”, numa clara alusão a um dos versos do Salmo 90. O livro, que aborda esse universo das drogas, da rejeição familiar ao homossexual, da ansiedade, da dependência química, é muito lido pelos psicólogos que tratam as doenças “da alma”.

Essa desorganização do sagrado no que tem de mais profundo nas nossas raízes acreanas é uma contradição com a recente busca de qualificação do Santo Daime como patrimônio cultural imaterial brasileiro. Isso porque o Daime não é somente um chá, mas todo um conjunto, em especial, os hinários. O hinário de Mestre Irineu Serra é totalmente pontuado pelos astros: “Sol, Lua, Estrela...”

Mesmo a Igreja Católica, que se constituiu na Idade Média, apresenta um calendário demarcado pelos dias santificados relacionados, por sua vez, com os ciclos agrícolas: Cinzas, Quaresma, Páscoa.

Vejamos o que diz Hilário Franco Jr., medievalista da USP: “A Páscoa era celebrada num sentido claramente de renovação das forças da natureza, acendendo-se o círio pascal e benzendo-se o fogo novo, ritos relacionados com o revigoramento que o Sol, identificado com Cristo conhece nessa época do ano.”

E mais: “As festividades de verão centram-se especialmente no dia do solstício, isto é, no dia mais longo do ano, de mais larga presença do Sol, o 24 de junho no Hemisfério Norte. Como o Sol atingia então o apogeu de seu curso, decaindo a partir daquele momento, era costume acender grandes fogueiras, que com sua chamas pretendiam realimentá-lo(...) Essas antigas tradições, por certo combatidas pela Igreja por sua clara origem pagã, foram por fim identificadas com a festa de São João Batista, pois este tinha surgido “como uma chama de fogo”, era “como uma lâmpada acesa”, uma “luminária”".

A mudança do fuso horário afeta a todos nós, acreanos dos pés rachados, de maneira muito mais complexa do que se pode imaginar. Talvez essa seja a última trincheira da nossa resistência cultural.

Fátima Almeida é historiadora

5 comentários:

  1. No meu ponto de vista, todas as bases da religião são tiradas das observações e mitos dos povos antigos que por sua vez eram feitos baseados no comportamento do céu. Não possuo conhecimento suficiente pra comentar seu texto de forma inteligente, mas ele certamente me fez lembrar que ao seguirmos a igreja, podemos na verdade estar seguindo apenas uma distorção das mitoligias antigas ao céu. E quem sabe até estamos louvando ao Sol e não à Deus?
    Acho que estou falando "abobrinha" mas seu texto me fez pensar nisso. Espero que entenda rsrsrs

    Abraços,
    Daniel

    www.whsolucoes.com

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  2. Fátima, não a conheço, adorei seu texto, lindo, mágico, uma magia que irradia da nossa compreensão, do que é nosso, do que não nos podem tirar. Muito obrigado, a você e ao Altino, pelas publicações grandiosas que tem feito.

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  3. Altino,essa veio de um amigo de boteco, do bar do Bigode, ele prefere não se identificar, então o apelidei de SEU MADRUGA.

    ESSE TAL FUSO
    ME DEIXA CONFUSO
    ENTRO EM PARAFUSO
    TENTANDO ENTENDER

    NEM BEM EU DURMO
    JÁ OUÇO O BARULHO
    DO DESPERTADOR
    QUE POSSO FAZER?

    AINDA ESCURO
    DA CAMA EU PULO
    TATEIO INSEGURO
    PRA LUZ ACENDER

    NEM CANTOU O GALO
    IMAGINA O CENÁRIO
    O CÉU NEM TÁ CLARO
    E EU JÁ A CORRER

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  4. Anônimo8:25 AM

    Mais uma vez um texto marvilhoso e bem feito, ele espelha muito bem a minha frustração quanto o que tem ocorrido em nossa terra...uma última trincheira sem dúvida...

    bjus

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  5. Admirável Fatima Almeida!
    o texto é bem elaborado e mostra que vc nao é bixo pequeno nao,pois além de retratar a verdadeira historia sobre os antigos meios de se situar através do céu,sol,estrelas,ainda relata e destaca a grandeza da história que muitos poucos desejam conhecer!parabéns pelo texto!.
    e os acreanos pes rachados,como vc cita,estao de acordo?
    um grande abraço para vc e o altino que se pre nos deixam felizes e situados com suas belas cronicas!!!
    sempre na telinha convosotros desde aqui!
    cheiro

    Mariah Almeida(radialista)

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