sexta-feira, 24 de agosto de 2012

O NOSSO DIPLOMA NÃO ERA PARA ISSO

POR EUGÊNIO BUCCI

Além de jornalista, sou professor universitário. Dou aula em faculdades de Jornalismo, por vocação e também por prazer, por gosto. Há ainda uma justificativa política para essa minha escolha: acredito ser possível melhorar a imprensa no Brasil e para isso o estudo, a pesquisa e o ensino podem desempenhar papel relevante. Embora a profissão de jornalista ainda deva muito aos autodidatas, alguns brilhantes, não é mais concebível formar editores e repórteres sem que eles passem pela escola. A formação acadêmica impõe-se, a cada dia mais, como um ingrediente indispensável da imprensa de qualidade. No mais, tudo o que possa prestigiar e aprimorar os cursos de Jornalismo no Brasil conta com o meu apoio.

Exatamente por isso, por defender uma escola de excelência, não concordo com a ideia de fazer do diploma um documento obrigatório para que um cidadão possa editar o seu jornal, em papel ou na internet. Eu apenas acredito que esse cidadão terá horizontes mais promissores se tiver passado por boas faculdades.

Não devo estar de todo errado. Nos EUA, país onde não há exigência de diploma para que alguém trabalhe numa redação de jornal, os estudantes de Columbia saem praticamente empregados do curso de Jornalismo - que, por sinal, não é um curso de graduação, mas de pós-graduação. Lá existem boas escolas de Jornalismo - que são boas justamente porque não são obrigatórias: os estudantes que as procuram estão mais interessados no conteúdo que aprenderão do que no certificado, no canudo que receberão ao final do ciclo.

Henry Luce e Briton Hadden são ícones da imprensa americana. Cursaram Direito, não Jornalismo. Foram colegas de classe em Yale. Tinham por volta de 25 anos de idade quando fundaram a revista Time, em 1923. Naquele tempo, vamos lembrar, já existiam cursos de Jornalismo nos EUA (o de Columbia já tinha pouco mais de dez anos de vida), mas eles preferiram estudar Direito mesmo.

Obrigar jornalistas a ter diploma de graduação em Jornalismo não tem sentido. Não conheço um único país democrático que imponha essa obrigação. Mesmo a França, que tem legislações severas, não é tão dura. Nessa matéria somos um caso único no mundo. Aqui, em 1969, a Junta Militar que mandava no País impôs a obrigatoriedade do diploma. O Decreto-Lei 972, de 17 de outubro de 1969, assinado pelo general Aurélio de Lira Tavares (ministro do Exército), pelo almirante Augusto Rademaker (ministro da Marinha) e pelo brigadeiro Márcio de Sousa e Melo (ministro da Aeronáutica), além de Jarbas Passarinho, que respondia pela pasta do Trabalho e Previdência Social, tornou obrigatório o diploma para os profissionais de imprensa. Sejamos claros: não foi por amor à liberdade de expressão que os ditadores - adeptos da censura e da tortura - baixaram o Decreto-lei 972. Eles queriam apenas impor mais obstáculos ao exercício profissional, assim como pretendiam criar controles governamentais - via Ministério do Trabalho - sobre a atividade jornalística.

Até 2009 a imposição da Junta vagava por aí, como um zumbi jurídico, quando foi finalmente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), por ampla maioria (8 votos contra 1). O decretão se foi, mas a mentalidade sindical-corporativista a que ele deu origem permaneceu e está prestes a reabilitar a velha obrigatoriedade. Em sua maioria, nossos sindicalistas são bem-intencionados e sérios, dedicados à defesa da nossa categoria profissional, mas não se deram conta de que, ao defender uma velha ordem, antinatural, podem defender, mesmo que inadvertidamente, o prolongamento de deformações retrógradas. A imposição do diploma não apenas não ajuda a imprensa, como cerceia os direitos dos que, sem serem jornalistas formados, como Henry Luce e Briton Hadden não eram, têm a intenção de criar e editar uma publicação.

No início deste mês, essa mentalidade cravou uma vitória estarrecedora no Senado Federal: por 60 votos contra 4 - apenas 4 -, os senadores aprovaram a "PEC do diploma", uma emenda constitucional que insere, no artigo 220 da nossa Carta Magna, a exigência do curso superior de Jornalismo para o exercício da profissão. É incrível: a atrocidade que a Junta Militar perpetrou pela ferramenta bruta do decreto nossa atual democracia está perto de reeditar por meio de norma constitucional. Agora, se a Câmara dos Deputados aprovar o texto, será assim e ponto. Como é matéria constitucional, não cabe o veto da Presidência da República.

Em 2006 tivemos mais sorte. Naquele ano nossos parlamentares aprovaram algo bem parecido, o Projeto de Lei 79/2004, que definia mais de 20 funções privativas de jornalistas diplomados, entre elas a assessoria de imprensa, o magistério em faculdades de Jornalismo e o fotojornalismo. Sabiamente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetou integralmente o projeto. Agora a chamada "PEC do diploma" vem para se vingar do bom senso de Lula em 2006 - e da decisão do STF em 2009.

Vale perguntar: o governo de Dilma Rousseff apoia a "PEC do diploma"? A julgar pela passividade dos senadores governistas, parece que sim.

A justificativa da PEC, além de voltar a insistir na tese maluca de que a assessoria de imprensa é função jornalística, argumenta que as tarefas do jornalista são tão complexas ("incluem responsabilidade social, escolhas morais profissionais e domínio da linguagem especializada") que só um sujeito diplomado daria conta de realizá-las. Na condição de professor de Jornalismo, eu discordo. Uma pessoa sem diploma pode ser jornalista, assim como pode ser presidente da República. O problema da República e da imprensa não é esse. Vamos tratar do que é essencial. Vamos deixar a imprensa livre cuidar de melhorar a escola, o que é urgente. Será melhor para o Brasil e, principalmente, para os jornalistas.

Eugênio Bucci escreve no jornal O Estado de S.Paulo

2 comentários:

ELSOUZA disse...

Caro Eugênio Bucci! Relativamente ao seu pensamento que consiste em afirmar que "o problema da República e da imprensa não é esse", a professora Marina Silva acabou de afirmar que o que precisamos é de atitude.

Joelson Dias disse...

A questão sobre a exigência do diploma para o exercício da função de jornalista não deve ser encarada apenas sob ponto de vista da prestação de um serviço de qualidade como acredita o nobre professor Eugênio Bucci, mas também no “conceito” que se possa ter dos profissionais como categoria. Hoje, existem vários cursinhos que ensinam a escrever um lead, sublead e suas respectivas argumentações, sem o diploma. A exigência, então, seria somente uma herança maldita dos anos de chumbo? As questões a respeito do diploma dizem respeito somente ao trabalho e não ao trabalhador?

O que o governo militar queria era uma forma de controlar potenciais formadores de opinião, como são os jornalistas. A lei agiria para tipificar como exercício irregular da profissão aqueles sem formação acadêmica, levando o Estado a apreender o “maquinário” da comunicação e acabar com os trabalhos. Com a vigilância pesada sobre as redações, de fato, os militares deveriam se preocupar mais com aqueles sobre os quais não tinha informações, sobre aqueles de quem não tinham um registro formal.

A realidade de nossos dias é bem diferente. O argumento do diploma assumido por imensa maioria dos jornalistas profissionais e acadêmicos é uma forma de valorização dos jornalistas como categoria. Imaginemos se todos que quisessem ser advogados não precisassem ter uma formação acadêmica e registro na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)? Imaginemos se todos quisessem exercer a medicina e não precisassem de formação acadêmica e registro no CRM? Ora, é preciso ter um diploma ou registro para entender e se defender com auxílio de algumas leis? Ou ainda, é preciso ter um diploma ou registro para diagnosticar ou receitar? O Acre não é uma referência na medicina tradicional? No entanto, não quero afirmar que não sejam necessárias tais exigências para o exercício desses trabalhos.

Afirmei que a questão não se assenta somente na qualidade do serviço, mas também sobre a imagem dos profissionais como categoria. A partir do momento que a formação acadêmica torna-se uma exigência, uma enorme quantidade de pessoas deixa de ser parte desse “exército de reserva” (trabalhadores potenciais) e isso afeta diretamente na busca de melhorias salariais e de trabalho. Como? Se temos menos pessoas no mercado de trabalho, três elementos positivos se estabelecem. O primeiro é que jornalistas de formação terão mais oportunidade de emprego. A empresa não contrataria um trabalhador fora das condições exigidas por lei, isso tiraria pessoas que só tem o ensino médio e até mesmo pessoas com outras formações acadêmicas desse mercado.

O segundo ponto. Com a diminuição do “exército de reserva” a pressão sobre os salários tendem a diminuir e cria abertura para melhoria, embora as coisas não funcionem de forma tão simples, sobretudo, dadas as pressões externas às redações e às relações políticas.

O terceiro ponto diz respeito à qualificação profissional. Os jornalistas diante da exigência estariam todos em um mesmo patamar, tendo como forma de ascensão a busca pela qualificação em uma pós-graduação, mestrado, cursinhos, embora o QI também dite as regras, e com um maior peso.

Essas são questões e desdobramentos que não são citados pelo autor e professor Eugênio Bucci. Ele pensa no trabalho, mas esquece o trabalhador.