terça-feira, 5 de junho de 2012

CARTA DE REPÚDIO AO GOVERNO DO ACRE

POR FLÁVIO LOFÊGO ENCARNAÇÃO

No último dia 29 foi divulgado nas redes sociais o ofício enviado por A Firma Cia. de Teatro e assinado por mim, como proponente do Projeto Cultural “A Serpente”, em que abrimos mão dos recursos a que teríamos direito por termos sido selecionados no Edital 2011 de Incentivo Direto da Fundação Elias Mansour (FEM).

A referida recusa acontece em protesto contra o tratamento que o Governo do Estado do Acre vem dispensando à classe artistica, com atitudes que demonstram uma total falta de compreensão das especificidades das atividades culturais que são a razão de ser da FEM, em especial o trabalho dos artistas do teatro. Além de protelar indefinidamente a distribuição dos recursos.

Demonstrando uma total falta de preparo, o funcionário da FEM a quem fomos perguntar pela previsão para o repasse (Sr. Generozo) disse ao nosso produtor que devíamos “esquecer” o projeto contemplado pelo edital e iniciar uma nova peça, pois não haveria uma previsão para a distribuição do dinheiro prometido e divulgado.

Os profissionais do teatro não podem colocar seu produto numa gaveta e aguardar a boa vontade dos gestores em cumprir os compromissos firmados e amplamente divulgados na mídia. Um espetáculo teatral tem um prazo de amadurecimento e não é possível adiantar ou atrasar uma estreia sem graves prejuízos à qualidade do produto final.

Em nosso caso, planejamos nosso processo de ensaios para que o espetáculo estivesse pronto dia 14 de junho . Contando com os recursos a que teríamos direito por termos sido selecionados em edital público, assumimos compromissos com artistas e técnicos. Os técnicos de nossa equipe contavam com o dinheiro prometido, e recusaram outros trabalhos para participar de nosso espetáculo. Em nosso planejamento, iniciaríamos agora a confecção de cenários, figurinos e a compra de produtos necessários para a iluminação.

Como o dinheiro não foi depositado na conta aberta especialmente para este fim, nos vimos na necessidade de adiar a estreia. Como diretor, me via no dilema entre as duas soluções possíveis, igualmente insatisfatórias: parar de ensaiar e perder os meses de trabalho, ou repetir o espetáculo indefinidamente nos ensaios, sem nenhuma objetividade?

Reunindo o grupo para debater o problema, chegamos à conclusão óbvia de que nosso trabalho provinha de nossa necessidade de expressão artistica, e não da vontade de ganhar dinheiro. Aliás, já havíamos decidido anteriormente que nenhum dos artistas seria remunerado pelo dinheiro do edital, que seria utilizado integralmente para o custeio da produção do espetáculo. O passo seguinte foi desvincular a carreira da peça do recebimento dos recursos, optando por uma estratégia de guerrilha cultural, com a valorização do trabalho dos atores como principal elemento de comunicação com o público.

Cortamos em nossa própria carne, sem que nossa atitude prejudicasse a quem fosse. Ao contrário, decidimos assumir uma posição política que traga à tona a crise vivida no setor cultural, visando auxiliar os grupos e entidades mais dependentes de recursos materiais, e colaborar com os setores da própria FEM que notadamente encontram-se insatisfeitos com a nova política do Governo do Estado, que não vem privilegiando a cultura local em suas ações.

Nesse momento em que percebo uma passividade assustadora dos setores de nossa sociedade que historicamente assumiam uma postura crítica em relação à política e a gestão do poder público, tenho orgulho de participar de um grupo com a coragem e a atitude de assumir publicamente o descontentamento que é generalizado em nossa área.
Seguimos os passos dos artistas com quem aprendemos nosso ofício, que nunca foram vistos com um pires na mão mendigando a ajuda governamental nem abrindo mão de se posicionar publicamente por receio de retaliações. Nosso modelo no Acre é o falecido diretor Betho Rocha, que não conheci pessoalmente mas que aprendi a admirar, e que tanta falta faz nesse momento.

Muitos amigos vieram nos avisar de que sofreríamos perseguições pela divulgação de nossa crítica ao trabalho dos gestores. Não acreditamos nisso, pois as instituições culturais não podem prescindir dos artistas. A arte deve se posicionar na vanguarda do pensamento crítico, e não como um apêndice obediente dos grupos hegemônicos. A FEM sem os artistas será apenas um bueiro para o desperdício de dinheiro público. Os artistas sem a FEM continuam a ser artistas.

Ao decidir recusar o dinheiro da FEM, reestruturando a concepção do espetáculo para uma estética mais despojada, conseguimos manter a data planejada para a estreia. Não teremos os belos figurinos que a figurinista Juliana Albuquerque havia concebido, mas outros belos figurinos serão criados a partir das roupas que usamos nos ensaios. Não mais construiremos o cenário realista que eu havia concebido em parceria com o brilhante cenotécnico Lambada, mas sim um palco nu, preenchido pela imaginação dos atores e do público. Não apresentaremos apenas nos teatros com recursos técnicos mais sofisticados, mas iremos também aonde o público está, apresentando em escolas e nas comunidades sem a utilização de iluminação profissional, mas acreditamos que o talento dos atores compensará as perdas. As perdas são materiais, mas nossa riqueza é espiritual e intelectual.

Convidamos o público acreano a conhecer o espetáculo “A Serpente” no ano do centenário do maior dramaturgo brasileiro, Nelson Rodrigues, autor do texto que encenamos. Serão todos bem-vindos no Teatro de Arena do SESC, onde realizaremos nossa temporada regular no mês de julho. Também estamos à disposição para apresentar gratuitamente, desde que tenhamos a garantia de um número mínimo de espectadores. Meu trabalho como diretor sempre teve essa orientação, especialmente desde minha chegada ao Acre em 2008. Já apresentei espetáculos nas comunidades rurais, escolas, associações de moradores e ate mesmo em residências particulares, para grupos que nos receberam com enorme carinho e nos encheram de satisfação. A estratégia que doravante adotaremos é um retorno a esse caminho que nunca deveríamos ter abandonado.

Flávio Lofêgo Encarnação é diretor teatral e professor de Teoria do Teatro do curso de Artes Cênicas da Universidade Federal do Acre

5 comentários:

joao disse...

O Betho Rocha mandaria enfiar o dinheiro no cu, daria rabissaca e continuaria fazendo teatro. É assim que tem que ser feito. Mas também não basta para incomodar. Mesmo com o dinheiro no cu, alguns gestores ficariam felizes por se livrarem de mais uns chatos... Penso que é necessário mais que isso para que a burocracia não vença: quem sabe propor um projeto de incômodo artistico-cidadão, esse que dá trabalho, requer paciência e não acaba nunca: questionar a politica cultural, fazer proposições, instigar o movimento cultural, a FETAC e o Conselho e Cultura a se posicionarem a serem o que deveriam ser.... E continuar fazendo arte até o mundo acabar e o incômodo ultrapassar para além do poder governamental, para além desse tempo histórico.

Acreucho disse...

Bem, qualquer um sabe que "cultura" não é o forte dos governos petistas, eles não dão valor à isso, pois, o guru deles é um ignorante. Quanto ao dinheiro para o espetáculo, eles tem que guardar para a campanha eleitoral que se avizinha. Por que gastariam com cultura?

Casa das Artes disse...

É exatamente isso que pretendemos fazer. Obrigado pelo apoio!

Natalie Messias disse...

Parabéns pela coragem do grupo, pela manifestação pública e que todos os setores insatisfeitos manifestem-se!!!

Paulo Wadt disse...

Vejo que o atraso na liberação dos recursos não seria são grave, pois é possível entender que outras prioridades possam ter sido assumidas. Contudo, a gravidade aumenta pelo fato de se ter empregado dinheiro na mídia para promover as ações do governo no apoio a eventos culturais, que depois não são apoiados.

Mais uma vez, ficou só na propaganda.

Aliás, alguém se lembra de quanto foi o valor do novo ADITIVO aop contrato de publicidade da Prefeitura de Rio Branco?