quinta-feira, 17 de novembro de 2011

LEMBRANÇA AOS AMIGOS, DONA NENEM

Antonio Alves


Estava no meio da cidade, com a mochila nas costas, esperando o carro para ir no rumo do interior, descer um rio e subir outro, do jeito que dá pra ver como o mundo foi feito. Chegou, no entanto, a notícia de que Dona Nenem tinha saído deste mundo, aos 101 anos de idade, com a mansidão iluminada que sempre guardou.

Leva consigo um século inteiro, aquele incrível séculos 20 cheio de histórias que levaremos mil anos a lembrar e outros mil a esquecer. Deixa-nos aqui, seus irmãos amigos filhos netos, com nossas poucas décadas de alguma memória que não seja inútil e sirva ao menos para acrescentar um grão de paciência aos tantos momentos em que faltar alegria.

Em 101 anos, podemos imaginar, dá pra juntar uma certa quantidade de pensamentos e sentimentos, a matéria sutil de que é feita a vida. Bastava olhar para Dona Nenem para saber que havia juntado, ao longo do século, uma infinidade dos melhores pensamentos e sentimentos. E o que juntava, distribuía.

Eu escreveria um bocado sobre esta avozinha, que já conheci com os cabelos brancos e com quem aprendi tantas coisas boas. Escreverei, certamente, quando passar este momento de despedida e nos juntarmos, sua grande família, para lembranças carinhosas. Por agora, apenas despeço-me.

Tivéssemos, cada um de nós, a certeza de viver tanto tempo, talvez pudéssemos justificar o quanto nos demoramos em guerras uns contra os outros e rebeldias contra Pai e Mãe. Que cada um conte seus dias e calcule quantos ainda faltam para apresentar-se. A morte é boa conselheira para quem sabe ouvir seu silencio.

Admirável é o trabalho quieto de uma costureira, vestindo a família e a comunidade, colocando linha na agulha em tardes de calma, murmurando sagrados cânticos antigos. Costurando lembranças. A vida no seringal, nas colônias, nos roçados, junto ao fogão de barro, fazendo chá para a saúde dos homens e das crianças. Soprando brasas no pesado ferro de passar roupa. Inverno de caça, verão de peixe. Comércio, cidade, o estudo dos filhos. E o pedal da máquina, o pé que não cansa, ano após ano juntando peça com peça no fio da vida.

O Mestre. O Daime. Um povo rebanho seguindo no bom caminho. A sabedoria da vida, a explicação de tudo, a alegria da eternidade –todos vivos para sempre, nenhuma perda- e a esperança em Deus e na Virgem e seu bento Filho. Desde longe, desde muito longe. Para sempre, para sempre, para sempre.

Onde estava eu há dez anos, que se passaram tão rápido? O que não fiz em vinte anos e não farei em mais vinte? Palavras vazias, jogos de cena, umas coisas à toa. Homem, apressa-te para viver mais lentamente. Cuida de aprender o que o tempo ensina. Tivesse eu feito o que o vento me sussurrou a cada verão, a cada inverno, não teria dores na alma nem sombras no coração. Seria como uma janela aberta para a luz da manhã, um buquê de flores perfumosas, um brilhante Talismã.

Queremos ensinar ao mundo o que não sabemos. A perda, a falta, a ausência, tudo o que o orgulho nos faz carregar sobre a poeira do chão. Devo me retirar deste palco, cultivar a discrição, medir o tamanho e o peso de cada palavra, sentir o perfume da flor silenciosa. A flor se chama Humildade.

Quando nos encontrávamos, firmávamos o amor sem palavras. Ela apertava minhas mãos e eu sentia grande alegria. Tudo fazia sentido, estava tudo certo, as coisas eternas no seu prumo e as passageiras passando. Nossa amizade macia e sólida, suave e firme. Seu sorriso para sempre em minha lembrança.

As bênçãos deixa aos filhos, netos, bisnetos, trinetos e a todos.

Grato por me acolher entre os seus.

Lembrança aos amigos.

Antonio Alves escreve no Página 20 a coluna O Espírito da Coisa.

5 comentários:

Esperança disse...

Que linda! me fez lembrar a mama.Descanse em paz.

Dantas disse...

Obrigado por tudo irmã querida.

Isac disse...

Não conheci Dona Nenem, mas a mulher que vai surgindo neste texto lembra minhas duas avós, Maria (também Nenem) e Neuza, a quem também, de empréstimo, aproveito para dedicar este belo texto do Antônio Alves.

Wallace Rocha disse...

Belas histórias dão ótimos textos! Antônio Alves sabe fazer isso com excelência! Parabéns!

Vera A. Martins disse...

"...Homem, apressa-te para viver mais lentamente..."
Guardarei esta frase para sempre!