Antonio Alves
Estava no meio da cidade, com a mochila nas costas, esperando o carro para ir no rumo do interior, descer um rio e subir outro, do jeito que dá pra ver como o mundo foi feito. Chegou, no entanto, a notícia de que Dona Nenem tinha saído deste mundo, aos 101 anos de idade, com a mansidão iluminada que sempre guardou.
Leva consigo um século inteiro, aquele incrível séculos 20 cheio de histórias que levaremos mil anos a lembrar e outros mil a esquecer. Deixa-nos aqui, seus irmãos amigos filhos netos, com nossas poucas décadas de alguma memória que não seja inútil e sirva ao menos para acrescentar um grão de paciência aos tantos momentos em que faltar alegria.
Em 101 anos, podemos imaginar, dá pra juntar uma certa quantidade de pensamentos e sentimentos, a matéria sutil de que é feita a vida. Bastava olhar para Dona Nenem para saber que havia juntado, ao longo do século, uma infinidade dos melhores pensamentos e sentimentos. E o que juntava, distribuía.
Eu escreveria um bocado sobre esta avozinha, que já conheci com os cabelos brancos e com quem aprendi tantas coisas boas. Escreverei, certamente, quando passar este momento de despedida e nos juntarmos, sua grande família, para lembranças carinhosas. Por agora, apenas despeço-me.
Tivéssemos, cada um de nós, a certeza de viver tanto tempo, talvez pudéssemos justificar o quanto nos demoramos em guerras uns contra os outros e rebeldias contra Pai e Mãe. Que cada um conte seus dias e calcule quantos ainda faltam para apresentar-se. A morte é boa conselheira para quem sabe ouvir seu silencio.
Admirável é o trabalho quieto de uma costureira, vestindo a família e a comunidade, colocando linha na agulha em tardes de calma, murmurando sagrados cânticos antigos. Costurando lembranças. A vida no seringal, nas colônias, nos roçados, junto ao fogão de barro, fazendo chá para a saúde dos homens e das crianças. Soprando brasas no pesado ferro de passar roupa. Inverno de caça, verão de peixe. Comércio, cidade, o estudo dos filhos. E o pedal da máquina, o pé que não cansa, ano após ano juntando peça com peça no fio da vida.
O Mestre. O Daime. Um povo rebanho seguindo no bom caminho. A sabedoria da vida, a explicação de tudo, a alegria da eternidade –todos vivos para sempre, nenhuma perda- e a esperança em Deus e na Virgem e seu bento Filho. Desde longe, desde muito longe. Para sempre, para sempre, para sempre.
Onde estava eu há dez anos, que se passaram tão rápido? O que não fiz em vinte anos e não farei em mais vinte? Palavras vazias, jogos de cena, umas coisas à toa. Homem, apressa-te para viver mais lentamente. Cuida de aprender o que o tempo ensina. Tivesse eu feito o que o vento me sussurrou a cada verão, a cada inverno, não teria dores na alma nem sombras no coração. Seria como uma janela aberta para a luz da manhã, um buquê de flores perfumosas, um brilhante Talismã.
Queremos ensinar ao mundo o que não sabemos. A perda, a falta, a ausência, tudo o que o orgulho nos faz carregar sobre a poeira do chão. Devo me retirar deste palco, cultivar a discrição, medir o tamanho e o peso de cada palavra, sentir o perfume da flor silenciosa. A flor se chama Humildade.
Quando nos encontrávamos, firmávamos o amor sem palavras. Ela apertava minhas mãos e eu sentia grande alegria. Tudo fazia sentido, estava tudo certo, as coisas eternas no seu prumo e as passageiras passando. Nossa amizade macia e sólida, suave e firme. Seu sorriso para sempre em minha lembrança.
As bênçãos deixa aos filhos, netos, bisnetos, trinetos e a todos.
Grato por me acolher entre os seus.
5 comentários:
Que linda! me fez lembrar a mama.Descanse em paz.
Obrigado por tudo irmã querida.
Não conheci Dona Nenem, mas a mulher que vai surgindo neste texto lembra minhas duas avós, Maria (também Nenem) e Neuza, a quem também, de empréstimo, aproveito para dedicar este belo texto do Antônio Alves.
Belas histórias dão ótimos textos! Antônio Alves sabe fazer isso com excelência! Parabéns!
"...Homem, apressa-te para viver mais lentamente..."
Guardarei esta frase para sempre!
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