segunda-feira, 26 de setembro de 2011

NO ACRE, UM TEATRO DE CRIME E IMPUNIDADE

Paulo Andreoli


A morte do meu pai, Francisco Andreoli, no dia 14 de setembro de 2004 continua sem solução. O dentista de formação e humanista de coração morreu no banheiro de sua residência no conjunto Castelo Branco em Rio Branco ( AC) vitimado por dois disparos de arma de fogo.

Sua companheira na época e única testemunha do crime, Irene Veloso de Castro afirmou que o mesmo se suicidou. Os laudos periciais indicam assassinato. O inquérito está arquivado. Ninguém está pagando pelo crime cometido. A sede por justiça me corrói.

Dia da morte

Segundo Irene Veloso, meu pai teria levantado da cama do casal por volta de 6hs, caminhado até o banheiro social da casa e após se trancar no banheiro, teria cometido suicídio com dois tiros. Um no coração e outro na cabeça.

No seu depoimento, alega que teria acordado com o primeiro disparo. Quando chegou na porta do quarto ouviu o segundo tiro. Então caminhou até o banheiro que se encontrava fechado, quando escutou o barulho de uma pessoa caindo no chão.

Preocupada com o marido, pegou o controle remoto do portão de sua casa e saiu em busca de socorro. Irene foi prontamente atendida por seu vizinho Everton Simão e sua mãe. Em depoimento, Everton Simão disse que por volta de cinco da manhã, ouviu um tiro e ficou apreensivo.

Ao ouvir gritos de socorro, o mesmo saiu de casa e encaminhou-se para a casa de Andreoli. Simão alega ter ouvido a expressão “ladrão” e após ter entrado na casa, ficou com receio de arrombar a porta do banheiro por pensar que Andreoli pudesse estar sendo mantido refém dentro do banheiro.

Após baterem muito na porta, Simão resolveu dar um ponta pé, arrombando-a. Encontrou Andreoli caído dentro do box, de frente para a porta, com uma perfuração na cabeça, tendo muito sangue salpicado nas paredes.

Viu também um revólver e um óculos posicionados do lado esquerdo do corpo. Simão só tomou conhecimento que eram dois tiros na parte da tarde quando estava sendo interrogado pela Polícia Civil.

Versão fantasiosa de suicídio

Segundo Irene Veloso, seu companheiro estava muito deprimido por causa de dívidas e ameaças de prisão civil por parte de uma ex-companheira, por seguidos atrasos no pagamento de uma pensão alimentícia. Andreoli também alegava que estava com a diabete alta. Tinha emagrecido muito e emocionalmente não era mais a mesma pessoa.

Andreoli estava sendo executado por bancos por ter sido fiador de dois empréstimos que não foram honrados. Uma fiança foi para a compra de um avião por um Policial Rodoviário Federal de prenome Getúlio. O avião caiu, não tinha seguro, Getúlio não pagou e Andreoli estava sendo executado.

A outra fiança era para Sérgio Castagnha, seu contador que tirou dinheiro do banco para comprar gado. Também não pagou e o dentista estava sofrendo ação de cobrança. Um ponto comum em todos os ouvidos no inquérito, alegado inclusive como uma provável causa de suicídio, seriam as cobranças de uma pensão alimentícia que o mesmo já não conseguia pagar. O valor alto (R$ 2.400,00) a ser pago por mês, inviabilizava o pagamento e o dentista lutava na justiça para abaixar o valor.

Vivia reclamando das ameaças de prisão pela ex-companheira. No depoimento de suas funcionárias, tanto da clínica como de sua residência, este poderia ser um dos motivos para tal ato insano.

Laudo

O IML – Instituto Médico Legal designou os médicos legistas Wilson Queiroz e Carlos Calderon para procederem o exame cadavérico. A necropsia iniciou-se às 14hs e estendeu-se até às 22hs. Após oito horas de exames, dezessete radiografias e coleta de materiais para exames residuais de pólvora nas mãos de Andreoli, o laudo Nº01.217.09.04 , confirmou que meu pai recebeu dois disparos de arma de fogo, sendo um na cabeça no lado esquerdo e outro no coração. Ambos considerados lesões fatais.

De acordo com o laudo, se o primeiro tiro tivesse sido no coração, Andreoli não teria condições de disparar o segundo, seja pela gravidade da lesão, que em autópsia, mostrou que literalmente explodiu o órgão.

Também é sabido na literatura criminal que quando um corpo é atingido, ocorre no ato da penetração do projétil, uma pancada que faz o corpo cambalear e trocar de posição. Em função disto, o suicida não teria condição de efetuar o segundo disparo, principalmente em outro lugar do corpo, no caso específico, tendo que elevar a mão para efetuar o outro disparo na cabeça.

No laudo conclusivo, os peritos invertem a seqüência dos tiros, considerando o primeiro na cabeça. Por ter sido disparado a “queima roupa”, com o cano encostado na cabeça, a explosão dos gases de pólvora, mais a lesão na região parietal esquerda, produziu um túnel no cérebro, considerada uma lesão gravíssima.

Chicão, como era conhecido pelos amigos não teria condições de efetuar o segundo disparo no coração.

O mais gritante nesta história é que no exame residual de pólvora não encontrou vestígios nas mãos de Andreoli que era canhoto, demonstrando que a vítima não disparou em si mesmo os projéteis que lhe atingiram o corpo.

Conclusão dos legistas: homicídio

O médico legista Deusmar Singui também analisou o laudo e concluiu pela hipótese de homicídio, lembrando em seu despacho que via de regra um homicida não efetua mais que um disparo de arma para dar cabo da vida.

Singui afirma também que o projétil que atingiu o crânio foi perpendicular ao ponto de entrada na calota craniana, sendo que nos casos de suicídio, este trajeto tende ser obliquado para cima. O legista afirma ainda em seu laudo que qualquer dos disparos, tamanho o dano causado, poderia causar a morte instantânea do dentista.

“Logo, se estivéssemos ainda dando crédito à hipótese de suicídio, no caso em tela, só poderíamos aceitar as lesões produzidas por um dos tiros, a presença do segundo disparo, qualquer que tinha sido ele, corrobora com a hipótese de homicídio” escreveu Deusmar Singui na sua conclusão.

Laudo da Polícia Técnica

Dentro dos procedimentos investigativos, o diretor do Instituto de Criminalística na época, Francisco das Chagas Paiva, designou os peritos André Luiz Lima da Silva e Alcineide Almeida de Queiroz Matos para realizarem o exame em local de morte violenta.

Os peritos se dirigiram ás 7hs para a residência de Andreoli na quadra 2, casa 2 do conjunto Castelo Branco. No laudo 2431/04 os peritos levantaram novas informações.

No estudo do ambiente físico da residência, constatou-se a ausência de movimentação violenta ou qualquer tipo de violação nas áreas de acesso e ventilação da residência. O cadáver também não possuía marcas de ferimentos ou escoriações nos membros superiores e inferiores, indicando que a vitima foi caminhando até o local de sua morte.

O estudo das manchas de sangue no piso, por gotejamento, espargimento, contato e o escorrimento no corpo da vitíma, apontam para a probabilidade mais provável do primeiro disparo ter sido efetuado no peito (coração), quando o mesmo se encontrava na parte mediana do banheiro.

A grande concentração de sangue, as marcas de escorregão dos pés da vitima neste ponto do banheiro confirmam esta tese.

O segundo tiro recebera quando já estava tombado, sendo atingido da esquerda para a direita, evidenciado tanto pela ferida de entrada do projétil, quanto pelo deslocamento da cabeça e ainda do escorrimento do sangue na parede na mesma linha da ferida.

Outro ponto que chamou a atenção dos peritos foi a disposição do óculos da vitima, com as alças devidamente dobradas e sem sangue na parte voltada para cima, encontrando –se num local com certa quantidade de sangue.

O gotejamento sob a lente reforça a hipótese de ter sido colocado após os disparos, haja visto que se tivessem caído com o impacto dos tiros, teria no mínimo, as partes que se encontravam voltadas para cima, ficarem impregnadas de sangue.

Quanto ao fato da porta do banheiro estar fechada, os peritos concluíram que existe a possibilidade de seu fechamento por fora, já que a mesma é do tipo “quadrada”, muito frágil e que pode ser acionada por meio de instrumento rígido como chave de fenda e similares.

Constatou-se ainda que existe um sistema de fechadura idêntico no quarto em frente ao banheiro, não estando no local no ato dos exames a chave desta porta, que sumiu do local. Concluindo os peritos afirmaram no laudo que no local ocorreu um Homicídio.

Dia anterior

Por volta de 12hs, no dia que antecedeu seu assassinato, Andreoli chegou de uma reunião no CRO/AC – Conselho Regional de Odontologia do Acre. De acordo com depoimento da empregada da casa, com ar de preocupado, Andreoli foi até seu quarto. No alto de um armário, guardava um revolver calibre 38. A arma era legalizada e meu pai tinha autorização de porte.

Subiu numa banqueta para procurar sua arma. Com ar preocupado, saiu de casa. No depoimento de Irene, ela diz ter encontrado Andreoli nas proximidades do bairro. Em nenhum outro depoimento, foi dito que Andreoli encontrou a arma que viria ser usada no seu assassinato. O irmão de Irene afirma ter estado na casa um dia antes da morte de Andreoli.

Outro fato que chama atenção é o de que sua camionete, uma L200 foi retirada da casa pelo advogado de Irene. O documento do carro tinha a assinatura de Andreoli em caneta tinteiro, sua marca registrada. Possuía uma coleção de canetas antigas.

Com uma esferográfica azul, Irene preencheu o documento de venda para seu nome, colocando data de 13/9, um dia antes do assassinato de meu pai. A camionete foi levada para uma oficina, segundo Irene para consertar um vazamento de óleo do motor. Como uma esposa pode pensar em mandar arrumar o carro, minutos após a morte do seu companheiro. Estranho, muito estranho.

Providências

No depoimento de Irene Veloso, que é defendida pelo advogado Roberto Duarte, ao diretor geral de Polícia Civil do Acre, delegado Walter Leitão Prado e que foi acompanhado pelo promotor de justiça Álvaro Luis Araújo Pereira, a mesma afirmou que a causa da morte foi suicídio.

Quando do nosso depoimento, filhos de Andreoli, o delegado Walter Prado, disse-nos que existe na literatura policial diversos casos em que o suicida tenha tirado a vida com mais de um tiro.

Até hoje, o delegado que virou deputado no Acre, não apresentou tais estudos para a família. Afastado do caso por motivo de doença, assumiu o caso a delegada Jussara Leite Viana.

A delegada dando seqüência ao inquérito ouviu o irmão de Irene, Iraldo Veloso de Castro, com quem Andreoli já teria tido desavenças e teria estado na casa no dia anterior ao crime.

Andreoli e Iraldo tiveram um grave atrito por causa de uma moto serra da vítima que foi vendida pelo cunhado sem seu conhecimento.

Em conversas rotineiras com meu pai, concluo que Iraldo mentiu ao afirmar que tinha um bom relacionamento com a vítima. Não tinha. O velho vivia reclamando de Iraldo e suas atividades na fazenda.

Assumiu o caso o delegado Ilzomar Pontes do Rosário, na época responsável pela Corregedoria da Polícia.

O delegado novamente ouviu Irene que afirmou que não havia ninguém na casa no dia do crime além dela e seus dois filhos menores. Disse também que não possuía nenhum seguro de vida em seu nome e que o marido teria passado a camionete para ela, um dia antes de ter se “suicidado” com receio do veiculo ser penhorado pela justiça, daí sua transferência repentina.

Irene, de acordo com o laudo residográfico não possuía pólvora nas mãos. Não foi feito exame nas mãos de Iraldo, o suspeito de desavenças com Andreoli. A reportagem constatou que Irene só foi submetida ao exame, dois dias após o assassinato de Andreoli.

Com este depoimento, embasado pelos laudos periciais, de posse da informação que Irene possuía sim, dois seguros de vida tendo seu nome como beneficiaria feitos pelo falecido e que a mesma teria inclusive tentado sacar quatro dias após o crime, complementado pela assertiva de Irene de que não havia ninguém na casa, Ilzomar pediu sua prisão preventiva que foi deferida pelo juiz Elcio Sabo Mendes Junior, da vara do Tribunal do Júri.

Andreoli, alguns meses antes de morrer, teria passado para o nome de Irene, uma fazenda nas proximidades de Rio Branco. Imóvel rural formado e de grande valor. Na época, Iraldo trabalhava na fazenda.

Sua prisão não contribuiu para o avanço das investigações, Irene não foi novamente ouvida enquanto se encontrava presa e ninguém foi chamado para prestar novos esclarecimentos. Também não foi feita até hoje a reconstituição do assassinato.

Vencido o prazo de sua prisão preventiva, o Ministério Público pediu sua liberação por falta de provas.

O processo hoje

Passado sete anos da morte do velho Chico Andreoli, o crime continua sem solução. Mataram meu pai. Mataram meu companheiro de aventuras. Mataram meu amigão.

Um grosso inquérito de paginas já amareladas, no fundo de uma prateleira de uma delegacia é o que sobrou da investigação da polícia acreana. Uma apuração fraca, com a inserção de uma lorota de um delegado que quis impingir um ato de suicídio ao meu pai.

Sua fotografia no meu escritório é minha companhia do velho italiano. Vim com ele em 1983 para Rondônia. Levei-o de volta, para São José dos Campos (SP) onde foi sepultado. Foi decretado dois dias de luto oficial na cidade do Vale do Paraíba. Andreoli foi militante e vereador do MDB – Movimento democrático Brasileiro nos anos de chumbo. Poeta e autor de livro, além de engajamento em atividades sociais e religiosas.

A morte do velho levou os irmãos por caminhos diferentes. “Sobrou eu” aqui em Porto Velho. Vivo com a esperança de um dia ser feita a justiça dos homens. A justiça divina é perfeita, nela tenho o aplacamento da minha dor. Da minha saudade.

Rogo as autoridades acreanas que reabram o caso. Estendo meu pedido aos fiscais diligentes da lei, o brioso Ministério Público.

Também aguardo os tais documentos que o deputado/delegado acreano disse existir e que comprovam que uma pessoa pode se matar com dois tiros.

Paulo Andreoli é jornalista em Porto Velho. O artigo foi publicado originalmente no site Rondonia ao Vivo. O Brasil tem 90 mil processos inconclusos de crimes contra a vida. O Acre é um dos campeões (veja) em inquéritos policiais como o que foi narrado por Andreoli.

4 comentários:

José Coutinho disse...

Da a impressão de que o filho sabe mais sobre o caso do que a policia. Meu amigo, não espere muito de nossa policia civil!!!! Paz em seu coração e o de todos aqueles que foram atingidos pelos tiros que levaram a vida do seu pai.

joao disse...

Não é o único caso. Até hoje a policia não quis descobrir quem matou Betho Rocha. Havendo interesse, sabe-se ou não. Na época, o maior suspeito era protegido de um delegado que hoje é político. A história se repete.
Assim, eles estimulam o dente por dente.

Albuquerque disse...

Políticos malandros usam a polícia para seus interesses pessoais e políticos. Há muita ingerência política de pessoas ligados ao governo. Um caso rápido, um policial em embriago atropelou e matou uma criança a mais ou menos quatro anos atrás na frente da minha casa. Era protegido de um político governista.Mesmo várias manifestações dos moradores não aconteceu absolutamente nada com o mesmo, que continua dirigindo viaturas da policia civil tranquilamente, mãe da criança, pobre coitada caiu na depressão e no vício. Desgraçado acabou com uma família.

Roberto Feres disse...

Caros Paulo e Altino.
Parabéns a ambos pelo texto e a publicação.
Ao que pareceu, este não é um caso simples.
Crimes acontecem todos os dias e abarrotam de trabalho as equipes policiais e a importância de cada caso é proporcional a pressão que os interessados impõe para que seja solucionado.
O tempo, além do esquecimento público, faz os processos mudarem de mão várias vezes: troca-se o delegado, o promotor e até o juiz.
Por menos que haja qualquer interesse (ou desinteresse) de indivíduos da policia pelo desdobramento dos inquéritos, a necessidade de um constante acompanhamento público desses procedimentos criminais, principalmente os de características violentas ou hediondas, é essencial para que a justiça efetivamente aconteça.
Bom lembrar que, ao contrário da justiça cível, onde partes disputam um determinado interesse, na criminal o acusado cuida do seu interesse de demonstrar inocência, enquanto a outra parte (o Estado) cuida da pilha de papel que entope as mesas de delegados e promotores.