terça-feira, 12 de outubro de 2010

UM CONTO SOBRE A MORTE

MOISÉS DINIZ

Fiz todo esse relato, Lia, para te dizer que escapaste por um fio. Um fio de sangue, uréia, de gânglios, água, de cordão umbilical. Eu e tua mãe decidimos te executar! Cadeira elétrica, veneno, enforcamento, arma branca ou de fogo, afogamento, asfixia ou crucificação. Nenhum desses suplícios estava ao alcance de nossas mãos. Apesar de indefesa, Lia, essas poderosas formas de execução não tinham a capacidade de te destruir. Nenhuma armadura ou colete te protegia, apenas uma pele amorosa e elástica, o útero, envolvendo o líquido amniótico. Foi assim que descobrimos o quanto tu és forte. Restou-nos o Cytotec.

Todavia, Lia, preciso te confessar as angústias que controlavam meus impulsos quando da decisão de te executar. Sei que lançarei palavras ao vento, pois não há defesa para a tentativa de execução. O mais grave, Lia, é que tu não tinhas como te defender. Sequer podias chorar, pois o ar de teus minúsculos pulmões era água, sangue e uréia. Nenhuma corrente de ar veio em teu socorro para transportar a tua voz gutural. Teus braços ainda estavam pregados ao teu corpo, teus pés não eram nômades e tuas mãos não manuseavam uma única letra do alfabeto. Como escrever e enviar uma carta ao Papa ou à consciência de teu pai pedindo auxílio? Os carteiros estavam em greve, lutando também pela vida!
 
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Um comentário:

Jozafá Batista disse...

Belíssimo texto. Moisés tocou numa dimensão da questão, que é a dimensão ético-moral. Mas não creio que ela se encerre aí, até porque idéias não criam realidades. As idéias, que a dimensão ético-moral integra, são valorações simbólicas da realidade, interpretações da mesma.
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Em termos menos filosóficos, é preciso ressaltar duas coisas: em primeiro lugar, toda a agonia psíquica das mulheres no momento de fazer o aborto e expelir um novo ser humano. Não acho difícil, se pedirem, uma mulher construir um texto belíssimo como este do Moisés, na forma de uma carta de despedida. Abortar é errado, é antibiológico, as mulheres sentem e sofrem, e não há maldade nem prazer em fazê-lo até por questões de introjeção dos valores éticos que normatizam a vida social. Valores que são introjetados por mulheres e homens.
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Em segundo lugar, e não menos grave, é preciso observar a dimensão médica da questão. Milhares de mulheres (12 por hora, segundo o Ministério da Saúde) morreram em 2009 devido a consequencias de abortos sem acompanhamento médico.
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Ou seja, independentemente do que decidirem a respeito da descriminalização, o problema continuará matando mulheres porque é crime, na nossa legislação, abortar exceto nos casos previstos em lei.
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Esta contradição é interessante porque mostra duas coisas: primeiro, é perfeitamente possível ser pessoalmente contra o aborto, pelas questões ligadas à normatização ético-moral, e devido à questão latente da saúde pública (saúde feminina), diante do elevado número de mortes, ser totalmente a favor da descriminalização.
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Mas não creio que as partes estejam preparadas para discutir a questão nesse nível, já que isso requer o reconhecimento dos pressupostos que alimentam os argumentos. São eles: a idéia equivocada sobre o sofrimento da mulher livre para abortar, e o papel da sociedade no reforço das suas normatizações ético-morais contra a prática do aborto (mesmo após a descriminalização).
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Resolvam esses dois pontos de conflito e a questão se resolverá.
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Moisés, parabéns!