sábado, 26 de junho de 2010

ROLAR A PEDRA

POR JUAREZ NOGUEIRA

Altino, meu caro, esse texto surgiu de provocação de amigo meu que disse que estou muito radical. Eu que ando numa preguiça dos diabos, mas por escolha feliz estou a ler Nilton Bonder, o livro “Fronteiras da Inteligência”, dele extraí, radical, texto sobre o “senso de prioridade”. Explicandinho assim: a ordem modifica a essência. Tratei logo de mandar ao amigo, como resposta. E aqui o reproduzo, na minha inútil tarefa de rolar pedra. Eu, que não estou like a rolling stone, sugiro a você e a quem mais tiver paciência ler ao som de Bob Dylan, “Things have changed”, foi o que fiz, “The next sixty seconds could be like an eternity”, tanranranran, “Things have changed”…
(…)
I'm not that eager to make a mistake
People are crazy and times are strange
I'm locked in tight, I'm out of range
I used to care but – things have changed.

(Não estou afim de cometer um erro
As pessoas estão loucas e os tempos estão estranhos
Estou ensimesmado, fora de alcance
Antes eu me importava, mas agora as coisas mudaram.)

O que Nilton conta do senso de prioridade é isso:
“Certa vez, um mestre trouxe um balde de metal e preencheu-o até em cima com pedras grandes. Perguntou a seus discípulos: “Está cheio?” Responderam que sim.

Imediatamente, tomou pedras menores e as despejou sobre o balde. Pouco a pouco as pedras encontraram lugar nos vazios entre as pedras maiores e se acomodaram no balde. O mestre tornou a perguntar: “Está cheio?”
Os discípulos responderam que sim.

O mestre tomou desta vez uma vasilha que continha areia e a despejou por sobre o balde. A areia foi gradualmente ocupando os espaços entre as pedras maiores e as menores, de forma que também se assentou.
Novamente tornou a perguntar: “Está cheio?” Responderam, dessa vez, seguros de que estava.

O mestre buscou um jarro com água e o despejou por sobre o balde. A água rapidamente encontrou seu caminho nos interstícios de pedras e areia.
Agora, sim, estava definitivamente cheio.

Perguntou, então, aos discípulos, qual era a lição que se poderia depreender daquela demonstração.

Um discípulo disse que o ensinamento visava mostrar que sempre se pode encontrar mais espaço e que se deve estar atento para essas oportunidades.
O mestre discordou e disse: “A grande lição é que se não colocamos as pedras grandes primeiro, as menores depois, a areia em seguida, e por último a água, não é possível que caiba tudo no balde. Se fizéssemos ao inverso, colocando água primeiro, não haveria espaço para nada, especialmente para as pedras grandes.”

A água representa a fisicalidade, a matéria que envolve tudo, até mesmo nosso sopro divino. A areia é a afetividade que permeia nossa existência; as pedras pequenas, o intelecto que edifica e ergue estruturas complexas. As pedras grandes são as pedras fundamentais da reverência. Se não as colocamos em primeiro lugar, nunca haverá espaço para elas. Nosso “balde” só pode conter tudo, se priorizamos a reverência.

Entendemos isso com mais facilidade quando substituímos reverência por ética. Sem uma motivação ética que seja um primeiro movimento, uma intenção inicial, não se consegue incluí-la posteriormente.
Há prioridades que não podem ser precedidas por nada.”

OK, na prioridade das coisas, se não houve lugar para a ética antes, ela não caberá depois. Não priorizada, fica utopos, sem lugar. Está, aí, um sentido radical: do que provém da raiz, intrínseco, profundo, da essência ética. É o que constitui a base, é pedra fundamental da ação humana ampliada no dever de consciência. Ou deveria, deveria ser. Mas, “Things have changed”… tanranranran...

Em termos políticos, então, ressinto (e isso é o que explica o radical que ganhei): o que falta é ser menos leniente com a falta de ética. Falta ser radical mesmo, intolerante mesmo. Fundamentalista no sentido de priorizar o que é fundamento, fundamental: a “pedra”, mor da ética. OK, é bíblico e não sou eu o síndico: não atirar pedra quem tem pecado. [“Things have changed”… tanranranran, “If the Bible is right the world will explode”… tanranranran, “Things have changed”...] Mas nada impede de “dar pedradas, nas urnas” para tirar de circulação político corrupto. Literalmente. Com o ato humano de teclar, ampliado no dever de consciência. Mais eficaz que jogar ovo, tomate, cocô. E isso é ética. Também é bíblico: assentar a casa sobre rocha. A pedra grande. Primeiro. E sempre.

Eu cá não acredito – e a isso me recuso, que estamos condenados pelos “deuses”, para sempre, ao trabalho de Sísifo. Sísifo, mito grego, é aquele que enganou o deus do inferno, aprisionou a morte e driblou seu destino. Por isso foi condenado ao trabalho inútil e desesperançado de empurrar, sem descanso, uma enorme pedra até o alto de uma montanha, de onde ela rolaria encosta abaixo. E ter que recomeçar essa tarefa, monótona e interminável, moto contínuo da existência. A condenação, o inferno de Sísifo – vou reler, aqui – como a situação do indivíduo que não priorizou a reverência e não apenas como a trágica condenação de quem se empenha em algo que a nada leva. A reverência, no caso, é a ética. Sem colocá-la primeiro, estaremos presos ao cíclico, repetitivo esforço desse infortúnio de rolar a rotina de anos, de séculos, sem a esperança de algo mudar. Nada mais trágico e absurdo. O escritor Albert Camus, num ensaio sobre o mito de Sísifo, lembra que o absurdo exige revolta.

A pedra de Sísifo, na atualidade, tem outros nomes, outros pesos, outras implicações. Em alguns casos, é inútil, realmente, o trabalho de soerguê-la. Melhor, então, deixar rolar ladeira abaixo. Em outros, não. Basta que cada Sísifo assuma seu dever humano, contingente. Sem perder a esperança de que, se cada um rolar a pedra grande, e colocá-la primeiro na prioridade das coisas, poderá comover até os deuses. Comovê-los e fazer jus a uma revisão dessa lei, desse castigo de justiça tão duvidosa, sem variação, sem renovação.

Então, eu disse isso ao meu amigo, esse é o nosso trabalho como Sísifos eleitores, humanos. Cada um que se encarregue de uma pedra grande. Soerga. Ponha na sua frente, em primeiro. E empurre. Na construção de novo destino. Sem descanso. Porque os deuses sabem que Sísifo, mortal, por isso mesmo tem a liberdade de escolha e foi astuto o bastante para driblar seu destino. Se persiste como mito é porque persiste em seu castigo para nos ensinar a redenção humana: estamos condenados à liberdade. Então seria possível conceber um sentido para a pedra de Sísifo, para além do esforço fútil ou absurdo, o qual se torna, enfim, consciente. E você, já escolheu a pedra que pretende rolar daqui por diante?

“I'm not that eager to make a mistake”
tanranranran…
“Things have changed.”

Um abraço

Juarez Nogueira é professor e escritor mineiro em Divinópolis (MG), autor do "Manual de Sobrevivência na Redação" e "O Menino Alquimista".

5 comentários:

Joana D'Arc disse...

ELEJA ELEJA ELEJA ELEJA ELEJA

Em Nome da Reverência Pela Ética!

Históricamente,Marina Presidente!

Históricamente,Marina Presidente!

Históricamente,Marina Presidente!


Joana D'Arc Valente Santana,Eu Sou

Valterlucio disse...

Ótima reflexão. Parabéns ao autor.

Fátima Almeida disse...

acho que as pedras grandes foram pulverizadas pela dinamite das esquerdas. A clientela do bolsa família não consegue manusear pedras pequenas, só conhece tempestades de areia.E a água está contaminada pelos escarros dos empresários do petróleo, do ramo madeireiro, dos empreiteiros.Mas o artigo é belo, dá para ouvir com nitidez a voz do Juarez, como um lírio, em meio a esse silencio de lodo.

ALINE A SANTOS disse...

JUAREZ ESCREVE COM FIRMEZA. UM GRANDE AUTOR DO NÍVEL- PEDRA GRANDE LAPIDADA. O SEU TEXTO NOS LEVA A PERGUNTAR. ONDE ESTÃO SENDO FORMADAS NOSSAS PEQUENAS PEDRAS?
PARABÉNS PELO BRILHANTE TEXTO.
ALINE A SANTOS.

Altemar disse...

Vida longa aos fabricantes de baldes.