terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

ORFEU DO CARNAVAL

Moisés Diniz

O drama começou na mitologia grega e ganhou o grande público nos dias mágicos de carnaval. O mito grego sobe aos palcos do teatro pelas mãos do poeta Vinícius de Moraes e cenário de Oscar Niemeyer, como Orfeu da Conceição.

O mito grego do lendário cantor Orfeu, cuja lira, dotada de sons melodiosos, amansava as feras que vinham deitar-se-lhe aos pés. Filho da musa Calíope, ele resgatou a sua esposa Eurídice do Inferno, após ela ter sido picada por serpente.

Vinícius de Moraes (1913-1980) adaptou a tragédia de Orfeu e Eurídice para os morros cariocas, em 1956, com a peça "Orfeu da Conceição", musicada por Tom Jobim.

Em 1959, a peça foi transformada no filme dirigido por Marcel Camus, "Orfeu Negro ou Orfeu do Carnaval", que alcançou grande sucesso em todo o mundo e revelou pela primeira vez a vida nas favelas do Rio de Janeiro.

Neste filme foram lançados vários sucessos eternos da música brasileira como "A Felicidade", de Vinicius e Tom, e "Manhã do Carnaval", de Luiz Bonfá e Antonio Maria.

Orfeu da Conceição, a peça de Vinícius de Moraes, e depois Orfeu do Carnaval, o filme de Marcel Camus, voltaram ao palco depois que a imprensa divulgou algo extraordinário: a relação do filme Orfeu Negro com o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama.

O escritor e jornalista Fernando Jorge relata a influência do filme Orfeu Negro na vida da mãe de Barack Obama.

"No ano de 1959, uma jovem americana de dezesseis anos, extremamente branca, sem um pingo de sangue negro, chamada Stanley Ann Dunham, nascida no Kansas, resolveu assistir em Chicago ao primeiro filme estrangeiro de sua existência. Foi ver o Orfeu Negro, só com atores negros, paisagens brasileiras, música brasileira, história brasileira. Ela saiu do cinema em estado de êxtase, maravilhada. Adorou aqueles negros encantadores de um país tropical e logo admitiu: "nunca vi coisa mais linda, em toda a minha vida!"

Depois de tal arrebatamento, a jovem Stanley embarcou para o Havaí. E ali, aos dezoito anos, ela se tornou colega, numa aula de russo, de um jovem negro de vinte e três anos, Barack Hussein Obama, nascido no Quênia. A moça branca do Kansas, influenciada pelo filme Orfeu Negro, entregou-se a ele e dessa união inter-racial, nasceu em 4 de agosto de 1961 um menino, a quem ela deu o mesmo nome do pai e que é agora, aos quarenta e seis anos, o primeiro presidente negro dos Estados Unidos".

E encerra a sua argumentação o perspicaz jornalista: "a rigor, numa lógica perfeita, sem o Brasil, sem a história do poeta brasileiro Vinícius de Morais, o filme Orfeu Negro não existiria".

Na peça Orfeu da Conceição, Orfeu, condutor de bonde e sambista que mora no morro, durante o carnaval, apaixona-se por Eurídice, uma jovem do interior que vem para o Rio de Janeiro, para encontrar-se com sua prima Serafina. Ela está fugindo de um estranho fantasiado de morte.

No filme Orfeu Negro, inspirado na peça Orfeu da Conceição, de Vinícius de Moraes, a bela Eurídice afirma ao seu amado Orfeu que viera de Tarauacá, uma pequena cidade amazônica, no Acre.

O que fez Vinícius de Moraes incluir esse diálogo sobre a origem da amada de Orfeu? Queria o poeta fazer uma homenagem a uma mulher amada, a uma paixão que, como ele mesmo diz, "quem nunca curtiu uma paixão, nunca vai ter nada, não"?

O que acrescentaria a um filme multinacional a citação de uma pequenina cidade, no interior da floresta amazônica, se isso não estivesse revestido de uma simbologia? Vinícius de Moraes homenageou uma mulher linda e morena de Tarauacá, uma paixão secreta, talvez, e lhe deu o nome grego de Eurídice.

Eurídice foi interpretada na peça por Dirce Paiva e no filme por Marpessa Dawn. Eurídice, de acordo com o diálogo do filme, era o nome figurado e mítico de uma bela morena de Tarauacá, que se mudara com os pais para o Rio de janeiro.

A peça Orfeu da Conceição inspira o filme Orfeu Negro que, por sua vez, influencia uma branca anglo-saxônica a se apaixonar, como ela mesma diz, por um negro queniano. E no meio da ficção, personagens reais: uma morena de Tarauacá e o presidente dos Estados Unidos da América.

É claro que muitos sociólogos, na sua invejável sabedoria, vão afirmar que a Eurídice que sai do Acre é uma figura de linguagem para expressar a metáfora nacional do abandono e da injustiça. É sempre assim que eles vêem o norte e o nordeste.

E mesmo que fosse uma metáfora, Vinícius de Moraes acolheu uma mulher acreana, de Tarauacá, para simbolizar a deusa Eurídice, que doma o coração de Orfeu e faz o Brasil sambar pelo mundo afora. E dessa influência lírica um presidente negro nasceu.

A ficção é apenas a pele da história, que se envolveu com o mito grego e a poesia e trouxe para o nosso tempo uma história fantástica, que nos surpreende sobre os caminhos misteriosos da sexualidade e fragiliza tudo que descobrimos sobre os desejos da alma humana.

Em 1983, a Escola de Samba Estácio de Sá faz de Orfeu, de Djalma Branco e Caruso, o samba-enredo campeão do Carnaval.

No verso apaixonado de Orfeu
Reina uma mulher somente sua
Por este amor maior que o envolveu
Enlouqueceu e vagou pela rua
No amor ferido de Aristeu
E o feitiço de Mira
A amante abandonada
A dama negra a ele apareceu
Levando para sempre a sua amada
O morro emudeceu
Explode a dor no peito de Orfeu
E o poeta apaixonado
Canta ao céu desesperado
O grande amor que perdeu
(Oh! Lua)
Lua, oh! Lua
Musa amada, branca e nua (bis)
Quero lhe beijar e lhe dizer: Sou seu
E você dizer sou toda sua
Desceu do morro
Enfeitou sua tristeza
Fez seu reino de beleza
Das mágoas do seu coração
E este menestrel moderno
Procura até no inferno
A voz de sua razão
(e vai)
Vai aos orixás do Candomblé
Demonstrando sua fé (bis)
Cai na orgia
Porém nada mas fascina
Ao Pierrô sem Colombina
Na sua alucinação
Morreu Orfeu
Vencido pelo mal (bis)
Mas há sempre
Um Orfeu no Carnaval

Moisés Diniz é autor do livro "O Santo de Deus" e deputado estadual (PC do B-AC)

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