sábado, 23 de janeiro de 2010

NA COVA COM OS TUBARÕES

Gerson Albuquerque

“Deixar o erro sem refutação é estimular a imoralidade intelectual”. Inspirado nessa significativa afirmação de Karl Marx, farei alguns breves comentários sobre o texto publicado por Daniel Zen, que é um misto de prestação de contas (isso vai ser a tônica de tudo neste ano eleitoral) e críticas aos artigos por mim escritos e publicados neste blog e, o último, também no jornal eletrônico do João Roberto Braña.

Não entrarei no blábláblá do relato sobre o “esforço heróico” do diretor-presidente da Fundação Estadual de Cultura e Comunicação Elias Mansour (FEM) em defender sua opaca gestão, pois não é isso que interessa e nem muito menos o que está em questão neste momento. Minhas reflexões têm a ver com a preservação do “Casarão”, tombado em agosto do ano passado e, desde o mês de novembro, ameaçado de perder sua visibilidade com a construção de um modernoso prédio que servirá de agência para a Caixa Econômica Federal (CEF).

Como integrante do Conselho Estadual de Patrimônio Histórico, não inseri em meu parecer os lotes e construções vizinhas ao "Casarão”, principalmente porque o Brasil já conta com 75 anos de práticas de tombamentos e com uma legislação que não deixa margem de dúvidas sobre a vizinhança de bens imóveis tombados. Além do mais, a Constituição Federal de 1988, cujos avanços foram resultado das mobilizações e lutas do povo brasileiro, das quais tenho o maior orgulho de ter participado, manteve e ampliou os dispositivos da legislação anterior sobre tombamentos no Brasil. Desse modo, o gestor da FEM, já começa seu relatório/texto desviando o foco da questão. Nada surpreendente num Estado em que seus dirigentes tentam impor a razão e o discurso único há pelo menos 10 anos, e qualquer crítica passou a ser absolutamente insuportável.

No entanto, a primária tentativa de atribuir a responsabilidade pela construção do prédio da CEF ao relator que, por sua vez, não incluiu o lote do terreno vizinho no âmbito do processo de tombamento do “Casarão” é subestimar a inteligência da sociedade acreana e tentar fazer “remendo novo em lençol envelhecido”. Ou, como dizia minha avó: “é pasta ou é marmelada”.

São de Daniel Sant'Ana ou Zen, que também preside o Conselho Estadual de Patrimônio Histórico, as seguintes palavras: “Quando se trata de um bem imóvel individualmente tombado, a proteção de sua vizinhança ou entorno depende das definições constantes no âmbito de seu processo de tombamento. Da análise dos autos do tombamento do Casarão, depreende-se que a delimitação para proteção absoluta refere-se ao imóvel (gleba) onde se situa o Casarão. Nada dispôs, o seu relator, acerca do imóvel vizinho ou contíguo”.

Essa razão cínica estarrece, pois, partindo do próprio diretor-presidente do órgão que, no âmbito do Estado do Acre, é o responsável pela fiscalização e preservação do patrimônio histórico e cultural tombado e assegurado em lei, tem o mero propósito de tentar justificar o injustificável e, sob a faceta da prerrogativa administrativa, burlar a lei.

As casas demolidas no centro da cidade, a construção daquele caixote em alvenaria ao lado do Kaxinawá, entre outros refletem a omissão do poder público com destaque para a FEM que não fez o “dever de casa”, não informou oficialmente aos proprietários e, principalmente, à sociedade quais eram os imóveis que estavam indicados para compor o sítio histórico do centro de Rio Branco que seriam tombados e, portanto, estariam resguardados em lei. Não estou falando das cartas ofício do DPHC da FEM, entregues, muitas vezes, aos inquilinos ou vigias dos imóveis em questão, mas em documento oficial aos proprietários ou seus herdeiros (inclusive lhes informando das sanções previstas em lei), publicação no Diário Oficial do Estado e Município e ampla divulgação na imprensa para conhecimento da sociedade. O resto é mera incompetência na aplicação de procedimentos básicos e negligência.

Em seu artigo o Diretor-Presidente da FEM diz coisas desconexas e mesmo estranhas para quem preside um Conselho de Patrimônio Histórico. Ora, é óbvio que todo esse debate gira em torno de dois imóveis e não apenas do “Casarão” tombado. Mais óbvio, ainda, é que em áreas de “especial interesse” “as condições para licenciamento são diferenciadas: recuo mínimo em relação à rua, gabarito (altura máxima), taxa ou coeficiente de ocupação e de impermeabilização do solo, são todas condições observadas com maior rigor nessas áreas, com cotas mais rigorosas do que o normal”, como ele próprio afirma. Porém, em se tratando de construção na vizinhança de bens imóveis tombados, existe uma exigência primeira que condiciona todas as demais: a visibilidade e ambiência do bem tombado. Se essa exigência não for atendida, todas as demais caem por terra. Isso quer dizer que, apesar de Daniel Zen acender uma “vela para Deus e outra para o Diabo”, o mesmo não pode alterar o fato de que aqueles que autorizaram ou licenciaram a construção do modernoso prédio da CEF ao lado do “Casarão” tombado estão em desacordo com essa regra primeira.

Diz ainda Daniel Zen: “Compreende-se que a obra em questão não afeta, negativamente, a visibilidade, ambiência ou a integridade do terreno e da edificação do Casarão, estes sim, desapropriados. Vale dizer que a proteção do entorno de bens tombados não tem o condão de “engessar” a cidade ou mesmo uma zona de uma cidade. A proteção do patrimônio deve conviver harmonicamente com a dinâmica da cidade contemporânea, viva, em construção, crescimento e expansão”.

Se com tais palavras e o restante de seu artigo o Diretor-Presidente da FEM objetiva conformar seu assessor jurídico e a diretora do Departamento de Patrimônio Histórico, responsáveis diretos pela liberação da obra, também deixou evidente sua ignorância com relação a tombamentos e preservação de bens tombados. A lógica de Daniel Zen sobre visibilidade e ambiência é um insulto às profundas e indiscutíveis formulações da professora e jurista Sonia Rabello que não está sozinha nesse debate e, conjuntamente, a renomados juristas, a exemplo de Hely Lopes Meireles (falecido em 1990), Paulo Afonso Leme, Antônio Silveira Ribeiro dos Santos, têm sido referência nos tribunais brasileiros, no que tange a julgamentos de matéria dessa natureza.

É de Hely Lopes Meirelles a afirmação de que o “conceito de redução de visibilidade, para fins da lei de tombamento, é amplo, abrangendo não só a tirada da vista da coisa tombada como a modificação do ambiente ou da paisagem adjacente, a diferença de estilo arquitetônico e tudo o mais que contraste ou afronte a harmonia do conjunto, tirando o valor histórico ou a beleza original da obra ou do sítio protegido.”

Por sua vez, Antônio Silveira Ribeiro dos Santos, ressalta que ao estabelecer a proibição de construções ou outras ações na vizinhança/entorno de bens tombados que venham reduzir ou eliminar a visibilidade dos mesmos “o legislador quis proteger a visibilidade do bem tombado, mormente porque um edifício tombado por representar uma arquitetura antiga ou histórica pode perder seu efeito de registro histórico, caso venha a ter sua visibilidade prejudicada, perdendo assim uma de suas principais motivações de preservação. Assim, quando se fala em vizinhança, está se falando em entorno, e vizinhança não quer dizer que deva ser o imóvel do lado, ou limítrofe, pode ser imóvel que guarda certa distância.

No caso de preservação da estética externa de edifício, é evidente que esse conceito de vizinhança e entorno tem que ser considerado mais amplo, devendo ir até aonde a visão do bem alcança a sua finalidade, que é permitir a conservação de sua imagem de importância arquitetônica ou histórica, ou até onde a influência de outros imóveis não atrapalha a sua imagem a ser preservada, a qual muitas vezes inclui jardins, fontes e visualização ímpar. Assim, a imagem do bem constituído de importância deve fluir livre de empecilhos”.

As palavras desses juristas nada têm a dizer ao Diretor-Presidente da FEM no seu afã de autorizar uma construção alienígena ao lado do “Casarão” tombado como patrimônio histórico e cultural do Acre. O mais grave é que se trata do dirigente do órgão responsável pela fiscalização e preservação do patrimônio tombado. Esse mesmo dirigente, na última reunião do Conselho Estadual de Patrimônio Histórico, foi o primeiro a argüir que “não tinha mais jeito”, que “a legislação não definia bem qual é o entorno” e outras assertivas dessa espécie, deixando claro que já estava decidido a ser “flexível” com a iniciativa privada e a subordinar os interesses da sociedade aos interesses de um de pessoas.

Apressado, Daniel Zen, sequer se deu conta que estava se afundando em sua cova – ao lado dos “empreendedores da modernização”. Porém, quando se fala de tombamentos de bens imóveis, o que está em questão não é distender uma fita métrica no local para dizer onde pode ou não ser construído, reformado ou apregoadas faixas de propaganda. O que está em questão é a salvaguarda dos bens tombados nos marcos do que estabelecem as regras e normas do tombamento. O paradoxo é gritante: de um lado o “Casarão” tombado para usufruto coletivo, bem comum de toda a sociedade; de outro lado uma construção em terreno particular e de interesse particular, logo um bem privado. Daniel e Cia submergiram o DPHC da FEM nas graças dos proprietários privados ao escolherem o segundo. Fora isso o que se vê é descaso, indiferença e palavras de efeito, vazias de significado.

Não se trata de “engessar a cidade” como frisou Daniel Zen, caindo nessa vala comum que todo construtor tem como palavra de ordem. Ninguém falou que não se pode construir nada no terreno vizinho ao “Casarão”. Seus proprietários podem construir o que quiserem, mas em estreita observância às regras e normas que impedem que se tire sua visibilidade do bem bem tombado ou que quebre sua harmonia naquele cenário. Aliás, por que não construir um casarão em madeira, com uma arquitetura que não destoe daquele “Casarão” que está ali há décadas? Não seria fantástica uma sede da Caixa Econômica Federal nos moldes do Acre antigo, com seus casarões em duas águas, cumeeira alta, janelões, portas largas, varandas ao redor?

O que não se pode é escamotear a realidade e fazer de conta que um prédio que fere a visibilidade do “Casarão” tombado, principalmente, porque é “maior” ou mais alto ou “pelo contraste entre a forma arrojada da nova edificação e a singeleza do prédio do Casarão”, está em conformidade com a legislação. No mais, tenho pena do pobre Daniel: tão longe de Deus e da complacência dos leões, mas na cova em companhia dos tubarões da especulação imobiliária.

Gerson Rodrigues de Albuquerque é professor vinculado ao Centro de Educação, Letras e Artes da Universidade Federal do Acre e membro do Conselho Estadual de Patrimônio Histórico

6 comentários:

Vingador disse...

Bem,
Tenho algumas perguntas:
Ao invés de você e o Zen ficarem discutindo esse assunto através de artigos, não seria melhor entrar na justiça?
Afinal parece que você conhece bem a lei e tem embassamento pra isso. Não entrar na justiça contra algo que você sabe que está errado é também uma forma de omissão.

Rodrigo disse...

Isso tá parecendo muito mais guerra de vaidade do que real interesse público/cultural!!!!

UJS DE CRUZEIRO DO SUL disse...

Esse Daniel deveria era fazer um esforcinho para revitalizar e tombar alguns prédios aqui em cruzeiro, a FEM só funciona aqui com a lei de incentivo, fora isso não tem nada....vergonhoso seu Diretor.

Jozafá Batista disse...

Incrível esses comentários... toda vez que aparece uma discussão sobre qualquer coisa do mundo político imediatamente manifesta-se aquele velho e sinistro "Cale-se!"...
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Vocês deveriam tentar localizar a origem histórica dessa mal dominada compulsão ao invés de tentarem restringir um debate sobre um assunto público - e que portanto tem toda legitimidade independentemente de onde e entre quem ocorra.
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Das várias tendências históricas desenvolvidas pela pequena-burguesia acreana, a principal delas e que sempre me assustou é esse autoritarismo, essa necessidade de restringir debates políticos a quisilas de ordem pessoal. Historicamente, este é o pressuposto de todo o tipo de barbarismo...

Socorro Craveiro disse...

Muito bem conselheiro Gérson. É para zelar pelo patrimônio histórico que este conselho existe e seu presidente está sendo sabatinado publicamente. Nada mais saudável numa democracia. O poder público deve prestar contas à sociedade de seus atos administrativos. E a atitude do conselheiro Gérson coloca em seus devido lugar a discussão trazida à público, com clareza e responsabilidade. Corretíssimo.

grilo disse...

Vai ver que o pessoal da FEM resolveram seguir literalmente o sentido TOMBAMENTO, já que o nosso governador engraçaBINHO não valoriza o patrimônio histórico, tenho dito.