Maio de 1980. A cantora Mercedes Sosa passa quase incógnita por Manaus, se hospeda no Hotel Tropical e acaba dando um show, que não estava programado, no Teatro Amazonas. Concede longa entrevista a mim e a Natacha Andrade. Selecionamos o conteúdo e publicamos uma parte no Porantim, tablóide “em defesa da causa indígena”, e a outra, no jornal A Lucta Social, do PT-Amazonas, ambos editados por esse locutor que vos fala.
Foi por acaso que soubemos da presença de Mercedes Sosa. Quem nos avisou foi um dos motoristas do Hotel Tropical, cuja lucta por um piso salarial fixo de 8 mil cruzeiros havia recebido o apoio do PT local, no final de abril. A cantora vivia, naquela época, em Paris, exilada em razão das perseguições da ditadura do general Videla. Escolheu Manaus para descansar de uma excursão artística e conhecer um pouco a Amazônia.
O show no Teatro Amazonas foi decidido na última hora, não houve divulgação, a não ser aquela feita boca a boca nas salas de aula da Universidade. Uma mente arejada do governo Lindoso - não lembro mais se foi o poeta Élson Farias - facilitou os contatos institucionais para a cessão do teatro. O certo é que no dia 6 de maio, a grande intérprete da canção latinoamericana cantava, com a casa lotada, os ingressos vendidos a preço popular de 100 cruzeiros (Ela recusou proposta feita para cobrar mil cruzeiros).
Falecida domingo passado, em Buenos Aires, Mercedes Sosa tinha 44 anos quando passou por Manaus, explodia de criatividade e conservava rara beleza outonal, como mostra a foto do Porantim. Cantou músicas conhecidas do seu repertório, duas delas na língua Toba, um povo indígena da Argentina. Após o show, voltamos a conversar. Reproduzo trechos da entrevista publicada nos dois jornais, cujos exemplares arquivei.
La mano al índio
“Mercedes Sosa: Dale tu mano al índio” - essa foi a manchete de página do Porantim (Manaus, ano III, nº 19/20 junho/julho 1980), que puxava brasa pra nossa sardinha, citando Canción para mi América - cantada no show no Teatro Amazonas, de autoria do uruguaio Daniel Viglietti: “Dale tu mano al índio / dale que te hará bien / y encontrarás el camino / como ayer yo lo encontré“.
No entanto, Mercedes não caiu na armadilha de particularizar a luta: “Estou cantando para que se estenda a mão não apenas ao índio, mas ao homem da América Latina. Canto por todos os oprimidos, pelos índios, pelo trabalhador, pela mulher, pelo negro e por todos os marginalizados”. A cantora, desde o ‘Nuevo Cancionero’, nos anos 1960, sempre mostrou preocupação com a vida cotidiana dos humildes. Aliás, em sua boca, essas palavras deixavam de ser ‘chavão’ para adquirir força e boniteza de poesia.
Na entrevista, retomando o final da música: “La copla no tiene dueño / patrones no más mandar / la guitarra americana / peleando aprendió a cantar”, ela confirmou: “É isto. Foi lutando que a guitarra americana aprendeu a cantar. Sinto que o meu trabalho de artista cresce à medida em que me posiciono ao lado dos explorados”. Diante de nossa insistência com o movimento indígena, ela responde:
“Acho correto lutar pelo direito de cada povo expressar sua cultura. Contudo, devemos ter cuidado, isso não pode ser usado para a desunião dos povos da América. Sempre lutei pela unidade, primeiro da Argentina e, depois, da América Latina. O homem amazônico é meu irmão, sofre a mesma opressão que o homem da minha província de Tucumán. Os povos indígenas do Brasil devem aprender português, é uma forma de se defender.Devem aprender a somar, dividir, enfim, certas coisas necessárias à sua sobrevivência como povo numa sociedade como a que vivemos”.
En la mierda
O outro jornal alternativo que paparicou Mercedes Sosa foi A Lucta Social (Manaus, maio de 1980, Ano I, nº 4), com a seguinte manchete: Mercedes Sosa: com o PT e com os que vivem ‘en la mierda’. O texto de abertura também puxou a brasa para o nosso jaraqui: “Na entrevista, Mercedes se solidarizou com a greve dos metalúrgicos do ABC paulista e com o PT. Manifestou apoio à luta dos trabalhadores na Argentina e o compromisso que todo artista deve ter com os que vivem ‘en la mierda’”.
O jornal, envolvido pelo clima de greves de São Paulo, noticiou o show de forma panfletária: “O público vibrou quando ela interpretou ‘La Carta’ da chilena Violeta Parra. A letra registra a notícia do irmão preso por apoiar uma greve, e conclui: “Por suerte tengo guitarra / y también tengo mi voz / también tengo siete hermanos / fuera del que se engrilló / todos revolucionários / con el favor de mi Dios”.
Mercedes eximiu-se de discutir a situação interna do Brasil, mas por analogia acabou se manifestando, quando denunciou a repressão ao movimento operário na Argentina. Elogiou Chico Buarque e Milton Nascimento, “por causa do show que deram para arrecadar fundos para os grevistas do ABC”. E deu uma risadinha irônica, ao saber da afirmação de Paulo Maluf de que os salários dos metalúrgicos paulistas eram elevados. - “Mentiroso!” - ela disse.
Fizemos uma pergunta provocadora: - “Mercedes, um jornalista amazonense, malufista, criticou você por estar hospedada num hotel de luxo como o Tropical”. Ela rebateu: - “Isto é só um pretexto. Na verdade o que ele está criticando é o meu compromisso político, o que ele ataca são as propostas de transformação da sociedade. Nós, artistas, somos trabalhadores das artes, alguns bem pagos, sem que isso mude o nosso compromisso com as lutas populares por melhores condições de vida”.
- “Tristeza y penas en mi alma…Ay mi paloma, sin esperanzas!”. Às vezes, seu canto parece amargurado, como em Zamba del Regreso. Afinal, existe esperança?
- “Apesar de tudo, ou ‘apesar de você’, como canta Chico Buarque, há sempre esperança. Nos olhos dos jovens está a vontade de transformação. Vocês me disseram que consideram uma façanha lotar o Teatro Amazonas sem qualquer publicidade. Acontece que as pessoas estão acordando. A música, sozinha, nada transforma, mas pode contribuir no processo de despertar. Ontem, no show, eu disse que é preciso cantar canções que façam dormir as crianças e despertar os adultos”.
Três meses após a entrevista, num golpe de sorte, eu e Marilza Mello encontramos Mercedes Sosa em Paris, num jantar oferecido pelo pintor argentino Luis Felipe Noé, amigo do poeta Thiago de Mello. Mercedes lembrava com alegria e bom humor do dia em que cantou no Teatro Amazonas. Depois disso, La Negra continuou pelo mundo “andando y cantando que es mi modo de alumbrar”.
Agora a cantora de milongas, de chacareras, de zambas, de cuecas, de todos os ritmos americanos, “perdida en las cerraciones” nos deixou, quien sabe, vidita, por donde andará?”. Seus admiradores cantaram ‘luna tucumana´ na hora em que dela se despediram: “Ay lunita tucumana, tamborcito calchaqui. Más cuando salga la luna, cantaré, cantaré”.
“Su canción es simiente, es de barro y de cielo, es semilla y espiga, es futuro y recuerdo”. Talvez, por isso, algumas pessoas que lotaram o Teatro Amazonas há quase trinta anos, alumbradas por seu canto, possam entoar hoje as palavras que ela dedicou a Alfonsina: “Sabe Dios qué dolores viejos calló tu voz. Te vas, Alfonsina, con tu soledad; Qué poemas nuevos fuíste a buscar?”
No ‘zamba para no morir’, ela profetiza: “No me asusta la muerte ritual, sólo dormir, verme borrar. Una historia me recordará siempre. Veo el campo, el fruto, la miel, y estas ganas de amar. No me puede el olvido vencer”. Pedimos emprestados os versos de César Vallejo, poeta que ela amava, para dizer que as imagens de seu velório transmitidas pela tv mostraram que “su cadáver estaba lleno de mundo” .
♦ O professor José Ribamar Bessa Freire coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ), pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO) e edita o site-blog Taqui Pra Ti.
Um comentário:
Amigos,
Admitindo que esse tipo de criatura consiga "morrer", morre em cada uma um pedaço de nós.
Anchieta.
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