Marina Silva
O conflito entre indígenas e o governo do presidente do Peru, Alan García, mais uma vez colocou, aos olhos do mundo, a Amazônia em foco. Não como uma das regiões mais fascinantes e vitais para o planeta, mas como o triste lugar onde a violência ainda ocupa espaços que deveriam ser os de processos pacíficos de negociação, em busca de um modelo de desenvolvimento que possibilite respeito e qualidade de vida para todos.
A mobilização dos indígenas, que interditaram estradas e ocuparam as instalações de companhias petrolíferas, foi a resposta a uma série de medidas do governo peruano. As comunidades indígenas denunciaram que cerca de 70% do território da Amazônia peruana estavam sendo "alugados" para a exploração de gás e petróleo. Em pleno século XXI, as populações da floresta ainda se vêem diante da necessidade de resistir e lutar porque não foram chamadas a participar de decisões que modificaram a legislação do país para permitir a exploração de petróleo em suas terras, colocando em risco tanto seus modos de vida como a preservação dos ecossistemas.
Reconheço a complexidade implícita em avaliar o que acontece em outro país. Mas a mobilização dos índios gerou manifestações como a da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que exigiu o cumprimento da Convenção 169, sobre Povos Indígenas e Tribais, da qual o Peru é signatário. Para tanto, o governo deveria ouvir as populações indígenas sobre os projetos de exploração em suas terras, usando mecanismos apropriados de consulta, "em um clima de confiança e respeito mútuo".
Infelizmente, foram necessários mais de dois meses de protestos e dezenas de mortes para que o Congresso peruano viesse a reconhecer o erro. Os dois decretos mais expressamente responsáveis pelo conflito foram revogados. E o presidente Alan Garcia, por fim, aceitou negociar com os indígenas todos os outros pontos do pacote de medidas. Essas medidas haviam sido negociadas antes, mas não com as pessoas mais diretamente interessadas em suas consequências. Os decretos faziam parte de um ajuste na legislação, feito pelo presidente Garcia em 2008, para adequá-la a um tratado de livre comércio com os Estados Unidos.
O exemplo que vem do país vizinho pode muito bem servir para nós, brasileiros. Ainda vemos as populações indígenas com o olhar arrogante do colonizador, que decide por elas o que deve ou não ser feito em relação a seus interesses e costumes. No Brasil, em que pesem alguns avanços, essas populações ainda não são adequadamente inseridas nos processos decisórios. Temos um longo caminho a percorrer até a implementação da Convenção da OIT e para que possamos viabilizar consultas prévias e bem informadas sempre que as políticas públicas afetarem as comunidades indígenas.
Primeiro são criados os conflitos, as situações dramáticas, os impasses, com populações indígenas se sentindo órfãs da participação em qualquer instância decisória. Depois, em função da pressão e da resistência, é que há alguma mediação e negociação quando, na verdade, esses procedimentos deveriam se constituir, desde o início, em parte da solução. Ouvir os índios e as comunidades tradicionais, mais que uma saudável prática política, para o bem e interesse de todos, é uma necessidade, ainda mais quando se pensa, hoje, em desenvolvimento regional integrado para o conjunto dos países que compartilham a riqueza da Amazônia. A região tem quantidade excepcional de recursos naturais, mas também é habitada por populações detentoras de significativo conhecimento associado a esses recursos.
Não há como suprimí-las das negociações relacionadas a projetos que, a pretexto de desenvolvimento econômico - rótulo sob o qual há um longo histórico de desastres sociais, ambientais e, ironicamente, também econômicos - envolvam intervenções gigantescas na vida dessas populações. Isso vale para hidrelétricas, exploração mineral ou de qualquer outro tipo.
Populações que têm especial convivência com a floresta devem ser ouvidas não só pelo que elas aportam como contribuição para a proteção do meio ambiente, mas pela salvaguarda de seus próprios direitos e de sua cultura, inseparáveis de sua presença milenar nesses territórios. Esse respeito faz parte do verdadeiro desenvolvimento. É um caminho do qual não podemos desistir, porque o outro, esse que ainda resiste nos seus enormes erros e equívocos, vem mostrando tragicamente aonde leva.
◙ Marina Silva é professora secundária de História, senadora pelo PT do Acre, ex-ministra do Meio Ambiente e colunista da Terra Magazine.
Um comentário:
"A retórica confirma o poder dos poderosos. Instrumento outrora da democracia, a retórica circula como arte de bajular o tirano."
Atualizando o tema do Massacre de Bagua e a luta dos indígenas peruanos, leiam em:
http://karipuna.blogspot.com/2009/07/retorica-colonial-e-as-falsas.html
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