sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

CONSTRUÇÃO

Antonio Alves

Dez e meia da noite, na parada de ônibus, esperando o Custódio Freire que, como o nome indica, custa a chegar. Aproveitando a nova iluminação da avenida, tiro da mochila "Um Inimigo do Povo", de Ibsen, que o companheiro Itaan Arruda me emprestou -e já me cobra a montagem da peça que ainda nem acabei de ler.

Saem da zona de penumbra entre a avenida e o Parque três adolescentes, aí pelos 14 ou 15 anos, magros, cabeludos e suados, deslizando sobre seus skates. Param no portão da escola tentando avistar o vigia. Não conseguem, e um deles vem pular o muro perto da parada de ônibus, levando nas mãos uma garrafa de plástico para encher com água. Os outros dois ficam sentados na calçada, logo atrás de mim, com aquelas conversas ininteligíveis e banais, tipo assim eu ia na casa dele mas não rolou e tu ficou de me ligar e amanhã só.

Olhei a mochila sobre o banco, calculei o tempo de colocar o braço na alça, mas não identifiquei qualquer traço de agressividade na voz dos garotos. Sou, atualmente, um homem arrombado: um ladrão entrou em meu escritório enquanto eu viajava e levou um laptop, ao mesmo tempo em que outro entrou na minha casa para levar meus bujões de gás. Quando cheguei estava só o estrago. A "questão de segurança" que, como todo militante velho sabe, tem precedência sobre todas as outras, passou a fazer parte do dia e da noite, dos relacionamentos, da estética, da vida. "A vigilância cuida do normal" virou cultura. Mas ainda acontece de serem apenas garotos cansados e suados de zoar no Parque com seus skates, pulando o muro de uma escola para buscar água.

Não sei se algum deles percebeu qualquer traço de tensão em meu silêncio debruçado sobre o livro, mas justamente o que parecia mais jovem lançou no ar um contato, antes de tomar o último lugar na fila que desapareceu novamente na zona de penumbra de onde tinha surgido: "amou daquela vez como se fosse a última", cantou, e afastou-se com uma pedalada.

Com displiscente perfeição, o jovem skatista noturno entoou o primeiro verso de "Construção", música que Chico Buarque compôs no início dos anos 70 do século passado, quando, provavelmente, o pai deste garoto cujo rosto não vi ainda não era nascido e seu avô andava nas errâncias da juventude -como eu, que tenho idade para sê-lo, também andava.

Surpreendentes são as paradas de ônibus, às vezes.

Antonio Alves é cronista acreano. Não direi mais que é bissexto. Tem mais texto novo no blog Tempo Algum.

3 comentários:

Grupo de Choro Afuá disse...

Da mesma maneira que se depara com um simples jovem cantando Chico Buarque, já vi, por exemplo, numa formatura de Letras tocar "...to ficando atoladinha" e "...tome tome tome.... tcham tham tcham. Não dá para julgar pessoas somente pela embalagem, se ela está bem vestida ou má vestida. O interessante é que muitas vezes os bem vestidos são os que dão maior prejuízo para a sociedade.

Anônimo disse...

AA não é bissexto; continua bissexto...

Anônimo disse...

Então as paradas de onibus também são paradas de sucessos que perderam o onibus.Sabe lá se este garoto era realmente um garoto ou um espectro à procura de um corpo politicamente correto para se apossar e matar a saudade dos bons tempos,que a gente conhecia o pau pela casca,que se sentia seguro,que se tinha dignidade.[Foi o tempo que o tempo não esquece...]BETO MINEIRO.