domingo, 21 de dezembro de 2008

ATÉ LOGO QUE VIROU ADEUS

Edilson Martins



Há 50 anos deixei o Acre. E fí-lo com o coração partido. Gostaram do gongorismo? Garanti à dona Raimundinha - minha mãe, que fazia e vendia, num tabuleiro, o melhor chá-de-burro, o conhecido mucunzá de Rio Branco - que voltaria formado, de anelão no dedo, do Sul maravilha, para orgulho dela, e a ajudaria. Ela nunca mais venderia mingau nas noites de chuva e frio da cidade.

Ela riu -aquele riso de mãe, inesquecível. Estávamos sentados nos degraus de madeira de nossa humilde casa, no bairro da Base. Ela respondeu:

- Tu és igualzinho ao teu pai. Não voltará… Aqui merece um reparo. Disse humilde, lá em cima, com os olhos de hoje. Naquela época, em minha imaginação, era uma mansão, quase um palácio.

Reféns do texto
Naqueles idos e vividos, o pessoal da minha tribo, - e éramos poucos e nos imaginávamos muitos, - perseguia o bom texto. Talvez fosse mais perseguido que uma aluna do Ginásio Acreano, daquelas de rosto angelical e olhar romântico. Tínhamos as nossas referências, os nossos ícones; professores Potyguara, Miguel Ferrante, Florentina Esteves. Todos, os quase todos, tinham pisado terras não acreanas ou procediam de outros estados. O Colégio Acreano era o grande pólo cultural, de encontros e de desejos de nós todos.

Era a casa de Epicuro, o nosso jardim onde descobríamos o mundo pelo saber inquietante, humilhante e abrangente, por exemplo, do professor Rufino. Cafuso, quase negro, vindo também de fora, imagino que mineiro, nos abria as portas de Roma, do Grande Império, com seus generais, seus oradores incomparáveis. Cícero e Catilina eram objetos de traduções permanentes. E como era chato, difícil e gratificante, também, traduzir o latim, descobrir aquelas culturas, seus heróis, o modo de viver daqueles povos.

O professor Rufino era uma figura singular. Esquivo, morava no hotel Chuí, imenso poder para nossa imaginação de rapazes pobres, recatado, arredio, inclusive na sala de aula; fora dela tomava porres homéricos, e aí se transfigurava. Soltava a franga.

Porres homéricos
Hoje fico imaginando a origem, a razão de ser daqueles porres. Fico tentando medir a solidão daquele homem, mergulhado nas grandezas do Império romano - era a sua tapioca diária - tendo que viver numa cidade perdida, insulada, provinciana, alheia ao objeto de suas preocupações, fruto da teimosia de um bando de cearenses, escondida meio da selva.

Nesse mundo dos Buendia um povo inteiro tentava provar que a vida ali era possível. Gente semi-alfabetizada, lutando não por cultura, pela curiosidade do saber, senão pela sobrevivência física, e ele dissertando, revisitando, todos os dias, os generais, os feitos dos Césares. O porre ali era a sustentação espiritual, era o mais legítimo dos recursos para a sobrevivência. Nós não víamos assim. Éramos implacáveis, moralistas, cristãos e nada perdoávamos.

Havia o Tom Mix, um sujeito curioso, padecia da doença dos românticos, com um atraso de pelo menos cinqüenta anos – tuberculose - e que se paramentava de caubói e nos encantava no final das sessões à noite de cinema. E só era exibido filme de bang-gang. E lá ficava o nosso Tom Mix, cercado de nossa admiração, de nossa gratidão. Era demais termos aos nossos olhos a réplica quase real de nossos mocinhos. Ah, as sessões do Cine Rio Branco!… O bate-coxa invasivo, dissimulado, bom, deixa pra lá…

Começou a liberar
Por que não resgatar o Chaguinha, homossexual, enrustido, e não poderia ser diferente, estigmatizado, salvo erro de memória, alfaiate. Morava no Papouco - será que ainda existe esse bairro? - e preenchia, Deus sabe como, a solidão, a curiosidade e luxúria de muita gente boa.

No Acre daqueles tempos, - e diga-se que daqueles tempos era o começo dos começos, como se fala entre os índios, - essa opção afetiva era transgressão ousada, de alto ônus. Era uma nova estética, só praticada pelos espíritos mais sórdidos e obscenos.

Mas havia também as pernas das lavadeiras, das lavadeirinhas noviças, na beira do rio Acre. E sobre essas não havia punição moral, e, no entanto…

Durante o verão, que nos arrebatava, íamos nadar, tomar sol e desapropriar, nada de roubar, as melancias deliciosas que ocupavam as praias do rio Acre. Descíamos o rio montados nelas, com apenas a cabeça de fora, em profundo silêncio, tanto para nos esconder de seus donos, os colonos ribeirinhos, como principalmente vermos deslumbrados as coxas das lavadeiras, das meninas moças, das virgens angelicais.

A virgindade e a punição
Sim, naqueles tempos só se perdia a virgindade sob o manto sacramentado do casamento. Bons tempos dirão os saudosistas. Tempos ninjas, de resistências idiotas, e de abusivos prazeres solitários, dirá a alma mais liberada dos dias de hoje.

Nenhum Gisele Bündchen do mundo valia as pernas brancas, lívidas, robustas, contaminadas de pecado, das lavadeiras de ontem. Havendo sorte, podiam-se ver mais, muito mais, e, no entanto, os fracassos eram constantes.

Pouco importa, mesmo não vendo, garantíamos, exultantes, à noite, nas ruas poeirentas ou enlamaçadas da cidade, que tínhamos visto tudo. E o tudo não era pouco em nossas imaginações incendiadas de desejos. Éramos todos filhos das bravatas, dos superlativos.

A Fiorentina passara pelas universidades cariocas, falava francês como nunca antes se fizera antes em nosso país. Desculpe, houve um ato falho. Naquele tempo o Lula ainda era baixinho.

A retórica que encantava
O Miguel Ferrante, cuja filha hoje é novelista da Globo, sempre de terno de linho branco, nos encantava durante as aulas de Português. Era um grande retórico. O Potyguara, miúdo, pequeno, quase mecânico em seus passos, mas como crescia na sala de aula. Depois havia seus livros, livros de ficção contaminados pelo naturalismo do Jorge Amado, que pelo menos para mim, eram aguardados como quem sonha em invadir outros mundos.

E olha que era o mundo dos seringais que eu conhecia muito bem, posto neles ter nascido e crescido. Muitas de suas páginas eram desfrutadas sob emoção silenciosa, contida, afinal de contas, bom, toca o barco….

Havia, bom não esquecer, uma sensação de aldeia. Não era uma coisa clara, como agora percebemos, mas era visível que todos se conheciam e quem sabe, se toleravam. Era uma Rio Branco sem privacidade, sem segredo, sem clandestinidade. Bom, dirá o leitor virtual, que saco, que horror de mundo!… Não era bem assim. Havia uma sensação de grande família, e de acima de tudo solidariedade. Sem exageros ou pieguismo.

Pecado e absolvição

Se todos pecavam, e como pecávamos, havia, portanto, uma absolvição coletiva. Sabíamos de cor quem traia, quais as esposas que estavam dando adoidado, quem eram os cornos, quais as deusas que liberavam demais, que permitiam avançar o sinal, e assim por diante. E mesmo assim, se mais não fosse, tudo era mistério. E o mistério, já dizia Machado, é o encanto da vida.

E os políticos, os caciques daqueles tempos, vale enfatizar, não haviam se iniciado na arte impune de achacar o poder público. Roubar, sempre se roubou, mas não com a impunidade e desfaçatez que se faz hoje no país.

Mas não é disso que quero falar. Estou pisando na bola, urinando fora do pinico. Quero sim, estabelecer um paralelo entre dois mundos separados por meio século. Se conseguir ótimo, mesmo o fazendo sem o talento e a graça que nunca tive.

Espero que não esteja cometendo o pecado da nostalgia, logo ele, o pior dos pecados no mundo de hoje. A nostagia hoje é o maior mico do mundo. Revisito o Acre e tomo um grande susto. Rio Branco está uma beleza. E me dizem que o interior passa pelas mesmas mudanças. O povo me pareceu feliz. Isto tudo após a morte do Chico Mendes, parceiro de utopias.

Chico orgulhoso
Essa rapaziada, essa companheirada que decidiu dar continuidade às suas utopias, não está fazendo feio, pelo contrário. Tenho certeza que se vivo estivesse, Chico estaria razoavelmente orgulhoso. O Acre melhorou. Isto é fato.

É muito difícil a população ter juízo, entender que desmatar é suicídio, se o mundo inteiro fez e continua fazendo isso. Essa é a grande questão. As chamadas frentes civilizatórias – fazendas, madeireiros, agronegócio, garimpo – chegaram à Amazônia para ficar. É briga de cachorro grande.

E, no entanto, o acreano é diferente. E teimoso. Está mostrando ao país que é possível administrar um estado sem saqueá-lo, sem demagogia barata, de braços com a população. E estado pobre, todos sabemos.

Teimosia

Pelo menos foi essa a sensação que tive. Juízo ligeiro, tudo bem, porque sem conhecimento maior. Como a sensação é a prostituta das provas, pelo menos no direito penal, é possível que tenha me enganado. É verdade existir esse artigo, essa cláusula no código penal? Se não existe passa a existir.

E resgatando; bem que minha mãe tinha razão. Nunca mais voltei para ficar. Para felicidade de meus amigos e da população em geral. Sou igualzino ao meu pai. Prometo, mas não cumpro. Em verdade sou pior que ele. Vivo mergulhado no mundo das fantasias, é o meu alimento permanente, minha tapioca do dia-a-dia.

Tudo isso porque tive na semana passada tive o privilégio de ser anistiado político, junto com o Chico Mendes, numa cerimônia pomposa, e ainda por cima ouvir do Estado brasileiro, pela boca de seu Ministro da Justiça, Tarso Genro, o pedido de perdão pelos constrangimentos sofridos em minha teimosia por um mundo melhor.

Não por ter sido preso, torturado, por quase um ano, nas dependências do Exército brasileiro, perseguindo um Brasil livre, com liberdade. Senão por continuar não cumprindo promessas, e me revoltando contra a opressão. Minha mãe tinha razão.

Edilson Martins é jornalista e escritor

6 comentários:

Anônimo disse...

Que ótimo encontramos alguém tão animado com os desdobramentos da história. Esse sentimento parece que está ganhando a alma do povo acreano.
Há pouco mais de quatro horas, após o almoço (15:20), passando pelo Largo do Machado, recebi um exemplar da Folha Universal (872, de 21 a 27 de dezembro de 2008). Por coincidência, tinha uma sintética entrevista com a dona Ilzamar Mendes. Ele apresenta esse mesmo entusiasmo, pós-benefício da anistia.

http://folha.arcauniversal.com.br/
folha/fotos/integra/Geral-872-Folh
aUniversal-2cliche.pdf

José Porfiro da Silva
jporfiro@gmail.com

Anônimo disse...

Carríssimo Edilson,

Um texto assim me faz andar, me anima, me fascina, pela esperança, o jogo das letras, o manuseio do passado sem chorar.

Parabéns pelo texto. Exuberante!

Ainda temos muitos erros, muita cretinice, muito dono de verdade absoluta. Mas, não podemos deixar de reconhecer que o legado de Chico Mendes é algo palpável, apesar de frágil. Frágil porque muitos se calam, até reverenciam nossos ideiais, só porque estamos no poder provisório do Estado.

Por isso a importância de textos assim para nos alaavancar no rumo de nossas utopias, fincar raízes e proteger os nossos sonhos mais fortes, que protegem os mais frágeis...

Um abraço,

Moisés Diniz

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Que belíssimo texto.
Realmente o Edilson encanta a gente com a sua simplicidade ao descrever os fatos da história de sua vida.
Ao relatar a sua partida do Acre com tanta clareza e simplicidade somado ao reconhecimento que ele dá aos que o ensinaram a gostar da arte de escrever na Escola no Acre: seus professores e também sua mãe.
Um exemplo vivo para os jovens - aproveitar todas as oportunidades oferecidas de estudos e se lançar aos "mares" com afinco perseguindo os seus ideais e sonhos.
Ser saudosista eu vejo como prova da humildade de uma pessoa que valoriza aos outros.
Os obstáculos que apareceram para o Jornalista e Escritor não o demoveram, ele sofreu e lutou, agora se vê livre de alguns fantasmas e saboreia a vitória.
Que benção o mesmo ter sido anistiado com vida quando sabemos que muitos não sobreviveram para ver a sociedade transitar dos anos obscuros para a Democracia.
Enfim: vale a pena lutar pelo o que se sonha!
Que venham mais e mais lindos textos.
Parabéns!

Unknown disse...

É Edilson, lendo teu texto, recordo com alegria o Édson Martins, teu irmão, embora ele fosse introvertido, e tu não. As palavras falam do passado, mas remetem ao presente, que logo será passado quando outros escreverem sobre estes tempos. Mesmo que digas que não cumpres o prometido, estou esperando para um papo tête a tête, para colocar os assuntos em dia.Edson Carneiro

Anônimo disse...

Que folha é essa aí da foto, atrás do Edilson Martins?