Marina Silva
Quando, em 2007, fui à Noruega para participar da 5ª Conferência sobre Biodiversidade e tratar da doação daquele governo ao Fundo da Amazônia - que deve efetivar-se esta semana -, tive a oportunidade de visitar o Museu Nacional, onde conheci algumas obras do artista plástico Edvard Munch. Dentre elas, a que é considerada a mais importante do seu acervo: O Grito, de 1833, momento marcante do movimento expressionista, que acabou se transformando num ícone, até mesmo da cultura pop.
Minha visita, feita juntamente com o embaixador brasileiro, Sérgio Eduardo Moreira Lima, foi marcada pela comovente disposição do diretor do museu, um homem de mais de 80 anos, com extraordinária juventude intelectual e capacidade de reportar a criatividade genial presente nas telas.
Enquanto nos embevecíamos com a narrativa empolgante do nosso anfitrião, fui tomada por uma sensação de profunda gratidão pela existência de pessoas que, como aquele gentil e sábio senhor, dedicam toda uma vida a enxergar, ouvir,compreender e compartilhar aquilo que a maioria das pessoas não compreende e, às vezes, sequer percebe.
O diretor recitou parte das linhas que Munch escreveu no seu diário, onde registrou o estado de espírito em que se encontrava quando inscreveu seu próprio grito na tela, não em palavras, mas em formas e expressões pictóricas. Segundo os registros do próprio artista, ao pintar aquela tela sentiu o grito do infinito da natureza, o que fez aflorar em mim um turbilhão de pensamentos que se misturavam com emoções paradoxais, de elevação e medo.
A que natureza gritante se referia Munch? A que em mim gritava através de sua arte era uma superposição de todas as dualidades que nos ajudam a compor a difícil trajetória do sentido: a humana e a natural; a do desejo e a do real, em infinitas díades opositivas entre si.
E tal como na obra de Munch, essas imagens aleatórias não estavam congeladas numa tela, mas em lembranças vívidas de árvores caindo, crianças chorando e sorrindo, sementes brotando. E em meio a tudo isso, passou por mim a imagem das duas torres gêmeas de uma babel que, como a do texto bíblico, caiu pela ausência de compreensão mútua entre povos, pela falta de aceitação das diferenças e dos sentidos.
Há sete anos, o dia 11 de setembro passou a marcar o que em alguns momentos podemos imaginar como o limite da voracidade do horror. O ocorrido com as duas torres novaiorquinas, que em sua arquitetura lembravam os dois algarismos dessa data, não ficou restrito à estupefação dos Estados Unidos diante daquele ato. Na sua radicalidade, no seu ódio e na sua dor mostrou que a panela dos gritos desesperados e sem rumo do mundo cozinha, ininterruptamente, a poção que alimenta o que estudiosos já chamaram de "a banalidade do mal absoluto".
O episódio como que sinaliza para todos nós que a causa para o adoecimento político, econômico e moral a que estamos submetidos, continua sendo a ausência de sentido, de significados e significação, sem os quais somos subtraídos de nossa capacidade de também nos percebermos e sentirmo-nos na figura do outro.
Há outros "11 de setembros" menos visíveis, mas com capacidade igual ou maior de provocar a dor, a humilhação, a injusta imolação de inocentes pela perda do sentimento de unicidade indivisível da humanidade. Não se mata sem também morrer; não se destrói sem que se seja parte dos destroços.
Munch foi, definitivamente, um artista genial pela qualidade de sua pintura e por nos colocar, de forma tão definitiva, diante de nossos medos mais profundos. Como se nos alertasse para, frente a eles, não ficarmos paralisados, impedidos de ir à luta para que a boa energia que existe nos corações, mesmo nos momentos difíceis, nunca desista de construir uma humanidade mais justa e acolhedora.
◙ Marina Silva é professora secundária de História, senadora pelo PT do Acre, ex-ministra do Meio Ambiente e colunista da Terra Magazine.
3 comentários:
Ele previu o que viria acontecer e está se concretizando: a intolerância acima de qualquer ato de fraternidade, a terra que nos dar tudo, inclusive o alimente sendo devastada em prol de uma simples meta - o enriquecimento a qualquer custo - as pessoas se auto-encarcerando por causa da violência urbana, os filhos matando os pais, os pais matando os filhos e as pessos preferindo assistir a esse filme de horror simplesmente porque a vida alheia lhes interessa.
Esse grito pode ser por causa da constatação de que o homem é o único animal que devasta tudo a sua volta, as outras formas de vida e inclusive a sua própria.
A sensibilidade de Marina perante todos os problemas que afligem a sociedade é tão chocante que deixa qualquer um em estado de reflexão, nem que seja só por alguns minutos, o que já é bastante haja vista que nosso cotidiano conturbado não nos permite muitas vezes nem pensar em nós mesmos, quanto mais nos outros.
"Os filhos e as pessoas preferindo assistir a esse filme de horror simplesmente porque a vida alheia lhes interessa".
Esse sim é o maior problema.
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