domingo, 1 de junho de 2008

RUIZINHO, A CARPIDEIRA-MOR

Leila Jalul

Ruizinho tinha um olfato aguçado, tão aguçado, que metia medo. Farejava velórios como ninguém. Muitas vezes acreditei, como ele dizia, que as almas dos futuros defuntos lhe davam o aviso com antecedência mínima de duas horas.

Segundo ele , mal acordava, uma sensação ruim, uns arrepios nas costelas, tomavam de conta dele. Era bater e ver: morreria alguém logo mais. Nunca paguei pra ver, claro!

Em vida teve uma paixão especial pelo Barão de Mesquita e sua esposa Olívia. Também nutriu um sentimento de quase veneração pelo pai do Acre e sua esposa, respectivamente. Era Deus no céu e o Coronel Guiomard Santos e dona Lídia Hammes na terra.

Baixo, um tanto gordinho, tinha uma cara muito engraçada e, no olhar, um muito de muito cinismo. Normalmente falava sério, mas, o sério só era sério, de verdade, quando levantava a sobrancelha do olho direito, quase a encostando na base dos cabelos da testa. Quando não, era sem-vergonhice mesmo!

Teve amigos de todas as tintas e pintas. Era capaz de ser confidente de maridos e mulheres que pulavam cercas, sem dar um único fora. Com eles formava uns triângulos fiéis de infidelidades. Tanto sabia das coisas de um como das do outro, e, de cátedra, dava excelentes conselhos aos "amigos". Quando contava uns segredos, dizia logo: conto o milagre mas não digo o nome dos santos, tá certo? Tá certo, dizia eu. Quero saber é da fofoca, meu filho! Desembucha logo, vai! No fim do papo, depois de insistir pouco, não resistia e contava o nome dos santos.

Um belo dia morre um marido, pulador de cerca e dele recebo uma ligação, já de madrugada.
- Comadre, sabe quem morreu?
- Sei não, diz logo! Isso são horas de alguém morrer?
- Porra, comadre, a jararaca quer que eu redija uma nota. Me ajuda. Passo na tua casa e levo para as rádios e jornais. Ajuda?
- Vem logo, cara!
- Dá um tempo. Estou procurando uma roupa para vestir no homem. Tá uma bagunça doida e a mulher não quer nem saber de nada. Tá é morta de feliz!
- E quem vai assinar a nota? E pagar rádios e jornais? E bancar os funerais?
- Sei lá, comadre. Isso se vê depois. Bota aí em nome da família daquele que em vida se chamou...
- Não dá, cara. O homem não tem família aqui. A família é a mulher.
- Põe em nome dela. Vou dar um jeito. Não esqueça de usar a palavra "consternada". É muito bonita.
- Tá bem.

Enfim, redigi a nota e entreguei. Fui dormir. Ele, incansável, mesmo com cara de sono, foi tomar as últimas providências.

De noite, passado o enterro, me liga o Rui.
- Comadre...
- Diz Rui, como foi o enterro?
- Comadre, a mulher não queria chorar, nem para posar de vítima. Nem de raiva. Nem de nada. Cheguei perto dela, quando entrou uma autoridade e pedi, ao pé do ouvido, que ela pelo menos passasse o lenço no rosto e fungasse. Sabe o que ela disse?
-Não.
- Vai te fuder!
-Sim, e aí?
- Aí, sobrou pra mim.
- Sim, Rui, tu chorou por ele ou por ela? Cantou as Incelenças?
- Incé o que, Comadre?, chorei pelo dever cristão. Aquela criatura ali, imóvel, sem pai, sem mãe, sem filhos...

Acho que chorei por mim, sabe?
- Tá bom, depois a gente se fala, nem que seja para, por dever cristão, eu te dar uma bela duma esculhambação.
- Comadre... a senhora não tem coração...
- Vai, Rui, vai descansar e enxugar essas lágrimas de crocodilo cristão. Vê se o morto de hoje morre mais cedo e me liga. Quero saber de tudo, tá bem?
- Tá.

A grande especialidade de Ruizinho era ser consolador de viúvas. Uma delas, bem abalada, não parava de sentir-se mal durante o sepultamento. Mas ele estava lá, amparando e repetindo as famosas frases: era chegada a hora, conforme-se com a vontade de Deus e outras que ele mesmo inventava na hora.

Morre um senhor, de boa índole, trabalhador e honesto. A viúva entra em choque.
Sobre esta senhora, Ruizinho me ligou, bastante "consternado".
- Comadre, Dona Eliene (fictício) deu um trabalhão. Acho que deu uma cinco piloras na beirada do túmulo aberto. Também, além do padre, mais três discursos... Ô povim!
- Pôxa... , mas conseguiram trazê-la para casa?
- Claro!
- Cinco chiliques e agüentou?
- É... Ela entrou no carro e desmaiou de novo. Eu sentei de um lado, Jonas do outro, e seguramos ela para não cair. A senhora lembra daquele filme que o cara (El Cid) atravessava a cidade mortinho e o pessoal pensava que ele tava vivo? Como é o nome dele?
- É Ben- Hur, Ruizinho!
- Isso mesmo, comadre. Ela chegou mortinha, mas triunfante! Igualzinha ao Ben- Hur. Demos uns chás de maracujá e ela foi melhorando, melhorando....
- Que bom!
- Agora nós vamos ver é como os meninos vão se comportar na hora da herança. Sei não, isso vai feder.
- Calma, Rui, isso é outro assunto!
Tempos atrás morreu meu compadre Rui. Quando fiquei sabendo, sorri muito. Dele, só lembranças amigas, engraçadas e uma constatação: já não há mais carpideiras criativas, que nem meu compadre Rui.
Requiescat in pace!

Leila Jalul é procuradora aposentada da Unversidade Federal do Acre

2 comentários:

Odele Souza disse...

Oi Altino,

Que bom ver um texto de Leila aqui.
As crônicas de Leila são deliciosas e é sempre um prazer vê-las publicadas.

Um abraço.

Anônimo disse...

Depois de umas e outras, pior do que esta, só aquela do camaleão ovado.