Maria Craveiro de Albuquerque
A hora de Greenwich, adotada na Grã-Bretanha em 1848, chegou aos Estados Unidos em 1873, ao Japão em 1888 e ao Brasil em 1913. No Acre ficaremos a partir do dia 23 de junho, por força de lei e sem consulta popular, com uma hora a menos que Brasília. O debate promovido por este blog a respeito da mudança de fuso horário para o Acre tem nos mostrado diferentes visões. Mas vale ressaltar que certas formas de ver o tempo –como a idéia de que é aceitável uma pessoa que tenha mais poder deixar esperando alguém com menos status– ignoram diferenças culturais e parecem ser universais.
Sendo assim, venho colaborar com o debate apontando estudos feitos por autores que analisaram a questão do tempo, a partir da contribuição de diversas áreas, começando por artigo do historiador inglês Peter Burke, que propõe uma leitura da história do tempo a partir do ponto de vista de um historiador cultural ou social examinando os sistemas de tempo de acordo com nossas construções sociais ou culturais.
Burke aponta que para se escrever a história cultural do tempo há pelos menos três grandes pontos (inúmeros outros menores a abordar), como a cronologia, a geografia e a sociologia. O primeiro ponto é sobre uma tendência na história humana, da mudança de um tipo de experiência do tempo que pode ser descrita como “ecológica”, para outra que podemos chamar de “mecânica”.
O antropólogo britânico Edward Evans-Pritchard, estudando o povo Nuer do Sudão, na década de 1930, escreveu sobre seu “relógio do gado”. Para os Nueres, cujas vidas giravam em torno dos animais de que dependia sua sobrevivência, o ciclo de tarefas pastoris era central para a percepção do tempo, em nível de hora, dia, mês ou ano. Esse “tempo orientado por tarefas” já foi universal. No entanto a invenção e a gradual disseminação dos relógios mecânicos permitiram que o tempo fosse dividido em partes iguais, enquanto a iluminação artificial das ruas e casas, primeiro a gás e depois a eletricidade, libertou as atividades humanas da dependência do Sol e da Lua, ou pelo menos substituiu as restrições naturais pelas culturais.
O segundo ponto a tratar é a geografia do tempo. Culturas diferentes têm maneiras muito diferentes de dividir e descrever o tempo. No século 16, quando os europeus estavam invadindo e explorando diversas partes do mundo, descobriram “culturas do tempo” diferentes: chinesa, japonesa, asteca, maia e assim por diante. Os colonizadores não devem ter ficado surpresos com essas descobertas, já que na Europa os católicos, cristãos ortodoxos, judeus e mulçumanos usavam calendários diferentes. Ao longo dos últimos cinco séculos, porém, houve uma tendência para o estabelecimento de um sistema de tempo global, pelo menos em nível oficial.
O terceiro ponto refere-se a uma sociologia do tempo. Em um país após o outro, os europeus incentivaram, quando não obrigaram, os habitantes locais a pensar em termos do tempo do relógio ocidental, considerado bom para a disciplina do trabalho, e na divisão dos “séculos” em antes ou depois de Cristo. O estabelecimento de uma rede de carruagens públicas na Europa do século 18 dependia de um “horário”, um sistema de organização que mais tarde se estendeu às viagens por trem e avião. Assim como, o “tempo industrial”, serviu não apenas como extensão do tempo do mercador às fábricas, primeiramente na Inglaterra e depois em todo o mundo, mas também à padronização do tempo seguindo o surgimento de novas formas de transporte. Hoje, nosso “tempo livre”, “feriados” e lazer, assim como nossas horas de trabalho são governados pelo relógio e pelo horário.
Mesmo na Europa o tempo não era homogêneo, como já nos foi dito pelo historiador francês Jacques le Goff, que escreveu sobre um conflito entre duas culturas do tempo na Europa medieval. De um lado, o “tempo da igreja” (concebido por teólogos e filósofos cristãos), consistia em revesti-lo de qualificações espirituais, tornando-o a sucessão linear desencadeada no ato da Criação que, tendo a eternidade por pano de fundo, transcorre irreversivelmente para o fim dos tempos. Nesse sentido o tempo da igreja é entendido pelos clérigos medievais como sinônimo de tempo histórico. De outro lado, o “tempo dos mercadores”, mensurável, mecanizável, e sobre o qual agem a inteligência, a habilidade, a experiência e a manha do mercador (Le Goff, 1995, p. 54).
No artigo, o autor citado aborda os sentidos atribuídos pelos seres humanos ao tempo como um produto sócio-cultural variável no interior de uma mesma sociedade e de um mesmo período. Um tempo sagrado versus um tempo profano, daí o conflito. Le Goff (na obra citada, pp. 53-59) analisando os possíveis encontros destes dois tempos, considera que coube à própria igreja permitir ao mercador unificar seu tempo de trabalho ao da vida religiosa cristã.
Outros tempos
Numa civilização pode coexistir tantos “tempos” quanto existam diferentes segmentos sociais. Esta pluralidade de representações é possível por que a imagem do tempo é entrelaça a uma série de fatores historicamente construídos, tais como as heranças culturais preservadas, o escalonamento da hierarquia social, as divisões sócio-profissionais, o controle sobre parcelas do poder ideológico.
Mas, certamente é necessário pensar em termos ampliados, pois, o tempo: (...) não é um fenômeno cultural de limites precisos, de alcance facilmente mensurável, tampouco um bem simbólico puro ou monolítico: revestido com a tinta invisível dos aspectos culturais que animam a vida cotidiana, o tempo se esconde numa série de domínios da existência humana onde não se manifesta explicitamente (RUST, L. D. Disponível em: Tempo e cultura clerical na Idade Média Central).
Rust entende ainda que a imagem do tempo não é algo natural aos seres humanos, mas uma elaboração multifacetada, polissêmica, densa e variável ao longo da história . Ela não se encontra apenas nos relógios e calendários, mas infiltra-se nas leis e organizações políticas, nos códigos éticos e morais, nas formas de sociabilidade, nos sistemas filosóficos e religiosos, nos tratamentos dispensados ao corpo e ao espaço e até no emprego da violência . “São estas maneiras de ‘fazer a história’ que ‘marcam’ ou ‘selam’ o tempo ”. Uma temporalidade é um dispositivo essencial da relação do ser humano com o mundo, permitindo-lhe dotar-se de uma identidade e orientar suas ações Uma representação do tempo é a janela que oferece uma das visões mais abrangentes sobre um universo cultural.
Para Hust, Le Goff assume o risco de “destruir a inocência do tempo”, por entender que o tempo não é um elemento objetivo e invariável ao longo das sociedades; mas um produto de interações sociais, de heranças e dinâmicas culturais, de intervenções ideológicas... Uma representação do tempo é uma modalidade de interação humana.
Em suma, a questão do tempo deve ser situada num quadro maior de contrastes e convergências, pois, mesmo que essas mudanças de atitude em relação ao tempo possam parecer extremamente recentes e até relativamente sem importância, elas trazem mudanças significativas e profundas para todos que serão por ela afetados.
◙ Maria Craveiro de Albuquerque é professora do Curso de Educação Física da Ufac. Possui mestrado (UFRJ) e doutorado (UFSCar) em Educação. E não é a favor da mudança de fuso horário para o Acre, mesmo não tendo sido consultada.
Um comentário:
Prof. Maria Craveiro,
Que bom ouvir o posicionamento de pessoas que têm argumentos coerentes e que abre espaço para o diálogo, em vez de impor suas vontades como é o caso que estão fazendo com a mudança do fuso horário. Com certeza precisamos fazer um debate mais aberto e franco com o povo acreano a este propósito. Chega dos interesses burgueses, chega da pretotência de quem está no poder. Precisamos dar voz e vez ao povo acreano. Demos uma resposta agora e outra nas urnas.
Estamos juntos.
Fraternalmente,
Isaac Melo
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