terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

O ACREANO DIANTE DO MAPA DOIDO

Oswaldo Sevá


Se vivo fosse, o genial Stanislaw Ponte Preta estaria verificando que o seu "samba do crioulo doido", aquele que fez uma sonora salada das celebridades de nossa história oficial, se desdobra e se recria de modo enciclopédico no Brasil do século 21. Dentre seus legítimos rebentos, o "mapa doido do acreano" é o embrião de uma nova ciência geográfica, hidrológica e geológica, que está sendo gestada neste interior do continente. Relembremos os “cases” da hora:

1. Na larga franja ocidental da maior rede de rios da América, fica a região desmatada da forquilha BR-364/BR-317, da qual somente restam as fotos de como era a floresta quase contínua. Todos sabem que aqui o vento das camadas altas da atmosfera, aquele que deveria diluir a densa fumaça das queimadas, é um vento que faz a curva. Precavido esse vento, porque pressente a muralha gélida dos picos andinos e resolve mudar de rota antes que seja forçado. Ou será malandragem, para arrastar a poluição do ar bem pra longe de onde ela foi produzida e assim, enganar as fotos de satélite?

2. Nas pontas dessas duas rodovias, aos pouquinhos estão concretizando ligações por estradas trafegáveis com os Andes peruanos, via Puerto Maldonado, e, futuramente, via Puccalpa. De lá, se sobe mais de quatro mil metros até o altiplano, de onde se pode descer até o Oceano Pacifico. O Acre fica mais próximo do Pacífico do que o Atlântico. Isso ninguém revoga.

Mas daí a denominar uma dessas rodovias de Transoceânica, é porque o geógrafo ficou mesmo doido. Por exemplo, a famosa ferrovia Transiberiana atravessa a Sibéria toda, até a beira do Pacifico. Outro: o Titanic, que afundou antes de se tornar um verdadeiro navio transatlântico, foi feito para cruzar o Atlântico. Trans quer dizer que cruza, não é? Transgênico é cruzamento de genes, né Altino? Agora, se a rodovia existente ou apenas sonhada liga no mapa o litoral de um oceano com o litoral de outro oceano, é uma rodovia interoceânica, que vai por terra. Aliás, se ela cruza o continente, aí também pode ser chamada de Transcontinental.

3. Pra aumentar a confusão, tem gente que fala há décadas em “saída para o Pacífico”. Não se sabe bem o que vai sair por essas rodovias, mas é bom lembrar que do lado de lá tem bem mais gente e muito mais mercadorias. É mais fácil eles entrarem com as coisas deles do que a gente sair com as nossas.

4. Outra coisa é o projeto de barrar o rio Madeira, maior afluente do Amazonas, formado por grandes chuvas, mas também pelo degelo da neve e dos lagos andinos. É outro desafio científico essa geografia do Ibama: para obter a Licença Ambiental, basta dizer que os efeitos terminam ali pela balsa de Abunã, que não afetam em nada a Fortaleza do Abunã - então, por que foram lá fazer proselitismo?

Assim sendo, as águas represadas ou os “impactos” jamais atingiriam a Bolívia, nem teriam qualquer conseqüência nos rios Beni, Madre de Diós, Mamoré. Outro dia, o governador do Acre esteve com o presidente no Planalto, e disse que pediu uma parte dos “lucros das usinas do rio Madeira” como compensação por impactos ambientais das obras nos estados do Acre, Amazonas e Rondônia.

Estranha essa hidrologia, em que o país bem pertinho (de Rondônia, onde serão feitas as obras) e que fica rio acima, não é atingido, enquanto sofrem impactos os dois estados vizinhos - Amazonas e Acre, cujas terras não são sequer banhadas pelo rio Madeira.

Agora, se vai afetar alguma coisa no Acre é porque o rio Abunã banha terras acreanas. Mas do lado de lá é a Bolívia. Tem que perguntar ao barranqueiro ali da cidade de Plácido de Castro: como que algo que atinge aqui não atinge logo ali?

Só se for aquele fogaréu do shopping sobre palafitas de Montevideo. Pegou fogo lá e o fogo não atravessou o rio Abunã. Mas pode deixar que quando tiver resto de petróleo derramado boiando, o fogo atravessa.

5. Isso faz lembrar outro campo fértil para a doidice geográfica, o qual foi incubado naquele evento organizado em Rio Branco pelos dominantes da política local, em abril de 2007. O pessoal interessado e mais os fascinados pelo ouro negro foram convocados para assistir a um seminário sobre a “prospecção de derivados de petróleo” sob o solo acreano.

Tá certo: por cima a geografia é diferente porque o subsolo é diferente. Ao invés de se extrair petróleo e gás como em outros locais mundo afora, no Acre parece que já tem gasolina, gás de botijão, óleo diesel, e até querosene pra turbina de avião, tudo pronto. É só furar no lugar certo e encher o tanque.

Oswaldo Sevá é professor da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp. Enviou o texto com a seguinte mensagem: "Faz tempo que abro, a cada semana, às vezes mais, o seu blog e me delicio ou me assusto com as coisas da terra. Quase sempre dá vontade de comentar alguma coisa ou de voltar a escrever. Só que o único rato que a montanha pariu foi uma coisa meio professoral puxando a orelha de quem inventa geografias e geologias. Grande abraço e parabéns pelo neto. Minha filha e meus dois filhos, inclusive o acreano trânsfuga, são flamenguistas desde pequenininhos". Clique aqui para conhecer o "sítio do Tio Sevá".

2 comentários:

Aflora disse...

Ah, muito dez encontrar o texto do Sevá! O Sevá faz bem pra saúde mental, clareia a vista, abre as ouças. O Sevá faz falta por aqui, precisa aparecer mais! Grande beijo.

lindomarpadilha.blogspot disse...

Caros Altino e Sevá,

Diante de tudo que já tem acontecido ainda temos que cuidar com o pessoal que está forçando a barra em Brasília para "liberar" as terras indígenas para mineração.
Infelizmente ainda há margem para piorar. Como tenho dito, continuo realista mas não resignado.

Bom trabalho

Lindomar Padilha