segunda-feira, 29 de janeiro de 2007

O DONO DA BOLA

Walmir Lopes

Este caso é adaptado de um caso antigo do qual não recordo o título. Qualquer semelhança com os dias atuais não será mera coincidência. Não tenho certeza também da autoria. Provavelmente um cronista e mais provavelmente ainda Sérgio Porto, o inesquecível Stanislaw Ponte Preta, de cujas crônicas fui assíduo leitor no século passado.

De qualquer modo peço que me perdoem o autor e os leitores, se na tentativa de ser fiel ao texto original pequei por falta ou por excesso. Se não primei pela fidelidade, creditem o fato às falhas mnemônicas de um ancião de 55 anos, cabelos encanecidos pelo tempo e neurônios enlouquecidos pelo álcool, que ao postar este texto já estará certamente com 56. Mas creio que a essência da estória foi mantida.

Havia na época um deputado que, graças às traquinagens que dispensam maiores comentários, amealhou uma fortuna considerável, passando a morar em suntuoso condomínio, ao lado do qual se esparramava uma pequena favela, que supria de mão-de-obra barata as necessidades dos apartamentos de alto luxo. Na área de lazer condominial, um campo de futebol gramado, linhas caiadas, traves em madeira de lei pintada com tinta a óleo branca, redes de algodão trançadas, bola oficial de couro.

Na mini favela, um campo de terra batida, linhas traçadas com uma ripa serrada em bico de gaita e refeitas a cada dez ou quinze minutos de partida, tendo como traves cabos de vassoura chumbados com areia socada em galões de banha de 20 litros. A bola, uma meia feminina de náilon recheada de jornais velhos. Cada grupo na sua, os ricaços jogavam no condomínio, liderados pelo filho do deputado, dono da bola, motivo inquestionável para exercer a liderança. De fino trato, esbanjava saúde, mas no domínio da bola era um zero à esquerda. Absorvera do pai, através do exemplo ou dos caminhos misteriosos da hereditariedade, algumas características pouco recomendáveis ao bom convívio social. Uma delas a soberba.

No time da favela a coisa era um pouco diferente. Nivelados pela pobreza, a liderança entre eles era conquistada pela soma das qualidades individuais, entre as quais sobressaía a maior competência no trato com a bola. O líder, um menino de seus oito ou nove anos, craque inato, físico franzino, reflexo das mazelas inerentes às condições sociais precárias, ampliadas pela fragmentação familiar, onde a mãe era o único sustentáculo.

Certo dia os meninos ricos convidaram os pobres para um amistoso no condomínio. Logo no início do jogo o pelezinho da favela inaugura o placar, fazendo um gol. Na seqüência saem mais dois. O quarto gol, aos quinze do primeiro tempo, foi a gota d’água. O líder dos meninos ricos, não suportando tamanha “humilhação” infligida por aqueles filhos de “Zé ninguém” ao time do condomínio e em particular a ele, filho de um deputado, correu para a bola, agarrou-a.

- O jogo tá acabado! - decretou.

Em seguida, na tentativa de devolver a “humilhação” sofrida lealmente em campo, passa à literal humilhação verbal, utilizando para isso toda a “autoridade” que o poder econômico lhe conferia. Enquanto os vencedores pobres se encaminhavam ao portão de saída do condomínio, ele lançava flechadas verbais.

- Os pais de vocês não têm carro e o meu tem. E é importado! Tenho tênis importado e vocês não têm! Estudo em colégio particular e vocês não estudam! Tenho cavalos de raça, vocês andam em cima de pangaré!

Sem poder dar o troco diante da dura realidade daquelas afirmações, o grupo seguia, cabisbaixo e silencioso, quando chega a última seta.

- A foto do meu pai sai no jornal e a dos pais de vocês não sai!

Ao ouvir essa frase, um dos meninos se volta, já com um brilho nos olhos, enfia a mão no bolso do calção roto e retira de lá um recorte de jornal amassado com a foto de um homem algemado entre dois policiais fardados. Estufa o peito e devolve orgulhoso:

- Estás pensando que é só teu pai que é ladrão?

Um comentário:

Saramar disse...

Altino, Walmir, eu bem que ri, mas foi pouco.
A história é triste porque antiga e tão atual; é triste porque continuará atual; é triste porque o único algemado da história é o pobre e também continuará sendo.
Infelizmente, não pude rir.

beijos