terça-feira, 21 de novembro de 2006

TEÚDA E MANTEÚDA

"Hoje, verdadeiramente, eu só pertenço a mim
e aos retratos de minhas paredes"

(Keilah Diniz)


Leila Jalul


Serenou, serenou, mas era incêndio. Festa na cidade. O Rio Branco Football Clube iria abrir suas portas e receber a nata da sociedade. Festa de gala. Não havia boutiques da Nonata Asfury, nem Detalhes Modas, e, muito menos, sapatos da Arezzo.


Somente a Genésia, irmã do Alencar, e outras costureiras, aprontavam, às pressas, os vestidos drapeados e rebordados com miçangas, vitrilhos e paetês. Tudo com o brilho dos gripirs (aportuguesei), dos tafetás e das sedas puras.

A roupa dos machos, inovadas a cada século, eram sempre as mesmas. Ternos cinzas, marinhos e pretos, cheirando a naftalina. Isso não tem a menor das importâncias. Valia, valia mesmo, era o desfile pelo carpete imaginário e vermelho, estendido sem dobras desde o portão principal até a borda do salão.

Era um ritual insultuoso para o povo do sereno. Insultuoso para quem quer que fosse que, por ironia, não possuia um único tostão para se aprontar para o evento.

Só sei falar de mim e das dificuldades que enfrentei para marcar presença no sereno. Tinha que estar lá fugida, quase sempre fugida, como costumo agir - herói é quem foge para não levar nos costados a última bala. Eu fugia e deixava um cobertor fazendo cara de corpo e mamãe nunca soube disso.

- Leila Maria?

- Presente!

O sereno era uma instituição. Sociedade alternativa dos excluídos. Verdadeira agremiação dos sem-clube! Acredite quem quiser, não foram poucas às vezes em que, numericamente falando, o sereno ganhava em termos de audiência do clube.

Valeu! Na condição de otimista, valeu. O sereno me propiciou momentos inesquecíveis. Metais em Brasa, Festa das Flores, Românticos de Sevilha (ou era Orquestra de Sevilha?), vinda e formada diretamente do e no interior de São Paulo.

Valeu tanto que inda lembro do som dos pistons dilacerando minha alma. E era aí quando eu entrava em estado de gôzo pleno!

Granada, tierra sonãda por mi.......
....................................
....................................
Granada, tus tierras están llenas de lindas mujeres,
de sangre y de sol................ Olé!

Gente, era êxtase puro. As minhas partes da frente batiam palma e, as de trás, pediam bis. Ocorre que, o que de melhor acontecia, não estava na observação dos justos modelitos, nem se perdiam nas saias esvoaçantes. Não ofuscavam os olhos de quem admirava o brilho das fantasias da Jamana, mãe do Bode, o Carlos Alberto Sakur.

O sereno estava muito além dos comentários sobre o glamour ou sobre a falta absoluta dele. Quem estivesse no afã de se atualizar sobre os últimos acontecimentos que rolavam nos bastidores do poder, nas alcovas dos casais ou nas relações proibidas (o Acre já teve castas) das meninas, bastava aparecer no sereno.

Passava um fulano, passava outro, e dizia um querido e inesquecível amigo, cujo nome omito por estar fora de alcance do mundo dos vivos:

- Esse é corno. Depois eu conto.

- Esse é ladrão! Depois eu conto!

Língua de serpente. Boca maldita.

Chegava a vez das meninas. O língua de serpente nunca foi muito achegado. Esse negócio de mulher é mesmo complicado. Tem quem goste! Tem quem odeie!

Passava a primeira, a segunda, a terceira e lá vinha a afiada língua de navalha:

- Tomara Deus que a diretoria desse clube nunca coloque um camburão com água na entrada desse clube. Tomara!

- Aquela ali, aquela lá, aquela dali, todas são "furadas". Nenhuma passará no teste do glub, glub (*).

O chão da Avenida Getúlio Vargas ficava esverdeado. Veneno destilado, hora de ir para o beco, onde o língua de serpente morava.

O sereno também era cultura. Foi por lá que ouvi pela primeira vez duas expressões que, aos meus ouvidos, soaram como um acorde de oboé e flauta: Teúda e manteúda. Teúda e manteúda, teúda e manteúda! Teúda e manteúda! Coisa mais linda!

Sereno era fonte de inspiração e de remorsos. Quando soube do verdadeiro significado das expressões - teúda e manteúda -, não contei conversa. Fui direto para a igreja, e, no primeiro confessionário, ajoelhei e falei:

- Padre, estou aqui porque pequei.

- Huuummmmm....

- Eu sou teúda e manteúda!

- O que?

Silêncio constragedor.

- Não posso dizer. Nem devo - respondi.

Padre, agora posso. Passados mais de quarenta e tantos anos, agora posso confessar: meu amante e mantenedor era São José. Era dos seus santos pés de onde eu retirava pequenas somas, a título de empréstimos. Que Deus me perdoe. Já paguei tudo e não devo mais nada. Ou fazia assim ou nunca atravessaria os limites do sereno.

Por penitência, com muito aprendizado, não recebo, não recebi e jamais receberei de nenhum homem, nada, nada, de nenhum, nenhum, mesmo, além de flores, nada, nada, nada!

Serenei, serenei.

Leila Jalul é poeta e cronista acreana. Comentário da Glória Perez: "Altino querido, eu lembro do sereno! Menina, antes de poder frequentar os bailes -coisa que só se permitia depois dos 15 anos-, era um programão o sereno dos bailes do Rio Branco Futebol Clube. A orquestra era a do Maestro Neves, a mesma que, aos domingos, animava a retreta. E tome boleros! Ali, do sereno, ouvia-se sobre a vida de todo mundo! O comportamento, as toilettes... Se um par colava o rosto, era um oh! e as especulaçoes começavam! Só a Leila mesmo pra fazer a gente reviver essas coisas! Grande Leila! Beijo pros dois".

18 comentários:

Anônimo disse...

Beijos pra você,menina Glória.
Quero e peço que o Altino mande meus textos , que são poucos, para que não te ocupes além dos teus afazeres. Há muita coisa pela frente até 02 de janeiro.
Vou contactar meus amigos , os meio amigos e os quase nada amigos para, a partir do dia da estréia que me procurem na teia por vc montada. Por certo, com certeza, hei de me parecer com alguém. Somos quase todos iguais!
Se não parecer, não me faltará coragem para pedir asilo. Do Sul de Londres até
as terras geladas das Malvinas, não me faltará espaço. Aliás, a gente sempre sobrevive, apesar dos pesares. Somos que nem postes que não se dobram ao primeiro pé de vento e nem se abatem na primeira tempestade.
Beijão para você. Estou aqui e daqui torcendo por você!
Leila

Anônimo disse...

Altino seria interessante que você ou alguem da Fundação Cultural gravasse certos depoimentos como os da Leila Jalul que a meu ver está produzindo, nos entremeios, um memorial da cidade no seu blog.Abraços. Fátima Almeida

Anônimo disse...

Boa idéia, Fátima. Leila está produzindo direto e já tem material suficiente para um livro. A crônica dela é deliciosa e os poemas mais ainda. Fazendo uma seleção também da pra fazer um livro com muita coisa que foi publicada neste diário virtual. Abraços.

Anônimo disse...

apenas para uma correção do texto. Onde se lê insultuoso, leia-se INSULTOSO

Anônimo disse...

Leila querida, "insultoso" não consta nos dicionários Aurélio e Houaiss. Ambos registram "isultuoso" - aquilo que insulta, que contém insulto; insultante, insultador, que revela desprezo, falta de respeito para com alguém ou algo; desdenhoso, indelicado, grosseiro. Por isso tomei a liberdade de alterar. Mas posso deixar o "insultoso" exigido por você. O que faço?

Anônimo disse...

Os textos da Leila são deliciosos e tão criativos que parecem vir com imagem. Impossível não visualizar as cenas, os personagens das histórias com as descrições. Livro já!!!

Anônimo disse...

Leila, sempre que leio os seus textos relatando o "outrora cotidiano" de Rio Branco, me vejo como expectador, me vejo presente ali naquele momento como se lá estivesse. Você tem esse fantástico dom... Escreva um livro contado as histórias daquela época, você tem muitissima vocação pra isso...

Anônimo disse...

Almeida, Golby e Luc:
é ainda cedo para pensar nisso.... tem coisa pronta desde 95, mas, por hora, tem que ser assim... eu e meu "guru" já conversamos sobre essa possibilidade.
Este texto nasceu ontem.... feito às pressas.
Eu gosto de discutir, modificar e, até jogar no lixo, e por que não?

Nunca fui afeita a nada oficial - nem federal, nem estadual e nada de municipal. Vcs sabem que editar um livro sai caro. Assim, vamos deixar como está para ver como é que fica.

Até que o Altino se canse de mim.....

A Fátima sugere que venha alguém da Fundação Cultural conversar comigo. Também não é a hora.

Agradeço aos amigos.

Anônimo disse...

Caríssimos Leila e Altino,
Acompanho sempre as notícias mais quentes do Acre por esse blog e fico muito feliz quando leio os escritos de Leila. Que maravilha encontrá-la tão presente e palpitante a falar de pessoas e fatos que registram um passado tão rico e hoje tão perto de ser revelado ao Brasil, ao mundo e, principalmente, aos acreanos que não se perceberam fazendo história. Em meio a tantas recordações nativas, fico eu observando à distância, procurando um espacinho para me enxergar no passado mais recente e que me é tão intenso e enraizado.
Obrigada, Leila, por sua lembrança, me incluindo "nas fotos de sua parede". Bjs

Anônimo disse...

Apaixonantes e muito vivas essas crônicas da Leila; importantes para conhecer a velha Rio Branco, pra quem chega agora como eu. No entanto, das expressões e gírias, minha ignorância permitiu entender apenas uma: "furada" (rs). Gostaria de saber onde ficava o "sereno" e o que significa "teúda e manteúda" - já ouvi essa expressão mas esqueci o seu significado. Parabéns a Leila!

Anônimo disse...

Leila querida, meus parabens pelo lindo
texto. Continue contando os causos do nosso Acre, seja no blog ou no futuro quem sabe, num livro.

Minha admira�ão.

Anônimo disse...

Menina Keylah, para vc vai ser mais fácil...suas memórias, além de recentes, estão alojadas numa cabeça privilegiada e com tino.

Difícil, difícil vai ser a minha busca.... e já avisei que, se não me achar, vou pedir asilo nas Malvinas. Não é possível que eu tenha me perdido de tal forma no tempo e no espaço....nesses cem anos... TENHO que me encontrar, mesmo que seja na pele da neta de algum mascate que viajava dias nos lombos dos burros para vender cachaça, tabaco e calças de cáqui e camisas de riscado lá pelos seringais.... Ou me acho, ou vou para o desterro!

É verdade, eu não sou tão velha para fins do ostracismo, nem tão nova para desconhecer os processos de mudança, nem tão doida para viver que nem peru em véspera de Natal. Às vezes, é como me sinto.

Um beijo grande

Anônimo disse...

Cara, eu estou com um texto sobre o Salão do Tajá. Vc deve lembrar dele.
Quero florear minha escrita com alusões à D. Beja, Dr. Felipe Assef, Dr Maurício e sua esposa Eliete (pais da Glorinha e a Mauriete), da Irmã Juliana..... etc, D Teodozita, acho que era isso.

Madrinha Irany , Seu Teó, enfim, vcs, eram vizinhos deles. Se lembrar, me dá um toque! Eu só tinha 5 anos quando morei em Sena Madureira.
Vc lembra do banho do Cafezal (só tinha um pé de café)?
Retorne.
Mil beijos

Anônimo disse...

Maurício, o Rio Branco é ali na Getúlio Vargas. Era o clube das famigeradas elites.... Fica em frente ao Bar Municipal, onde funciona um atendimento ao público.... e, hoje , observado de perto pelos olhos atentos do Chico Mendes que segura seu filho pela mão.

Teúda e manteúda, vc sabe!!!!! Se não souber, cuidado com elas! Elas só gostam do bem bom!
Abraços

Anônimo disse...

Prezada Leila
Parabens pela memória privilegiada acerca de minha querida cidade.Grato
pela citação de meus pais e de pessoas
que fizeram história no município.
Os locais de bailes eram dois:
Tajá e o Taioba.Estou no bloco de apoia-
dores que deseja ver suas crônicas publi
cadas breve em livro.
Abraços do Chico Souto

fizeram história

Anônimo disse...

Chico, meu amigo, hoje pedi ao Sérgio, seu irmão, que me avivasse a memória. Eu sou que nem foguete. Tem que cutucar por baixo senão não sobe!

Anônimo disse...

Leila querida,
voc� ainda mora naquele paraiso chamado
VILA VELHA ? vamos nos falar por e-mail,
estou adorando ler teus causos. � a m�quina do tempo,me devolvendo ao passado.
E-mail-me, fax-me ou fone-me.
sergiosouto@yahoo.com.br

beij�s e tapiocas

Anônimo disse...

Estou vislumbrando um futuro de grandes produções. Com as memórias registradas da Leila (em livro, para deleite de todos nós), com certeza vão surgir inspirações musicais também. Nada como um fiozinho pra puxar um novelo, não é? Olha só, Leila, que nem o ditado: comer e coçar é só começar. Então: coça, coça, coça...pium...........................