quinta-feira, 23 de novembro de 2006

NOTRE ÉCOLE

Leila Jalul

Notre école [Colégio Acreano] est située a la rue Benjamin Constant... Nous alons a table... Tinha que estar tudo trés joulie, na ponta de nossas línguas. E a gente carregava aquela porrada de livros, textos de francês, latim, portugês e, de lambuja, ainda tinha um tal de Ary Quintela, pequeno e pesado. Era o de matemática. Um terror! Nossos professores, todos gente fina. Dona Luluz, a tradução literal da palavra simpatia. Era meio doidinha, a bem da verdade. Talvez a razão de tanta simpatia. Ela ainda é viva. Caçamba. Tá virando cobra-grande. Ainda toca piano e, para indignação, ainda viaja para a Europa sozinha. Não é doida, mesmo?

O professor Rufino, a cara do Aluízio de Azevedo, de "O Cortiço". Um dos negros mais bonitos que o raio de sol cobriu. Figura bonita e esquisita. Garboso, elegante e, para que se lhe acrescente maior aura, extremamente reservado. Solteiro? Descasado? Assexuado? Come-quieto? Homossexual? Ninguém tinha nada a ver com isso. Ele passava por cima dos mortais com galhardia, como se caminhasse sobre nuvens. Não perdoava erros, não acrecentava décimos nem quartos de décimos, nem de milésimos para que quaisquer de seus discípulos passasse de um ano para o outro sem fazer força.

Sobrava para a gente, que tinha que ficar calada e sem resmungos, acordar as quatro da madrugada e estudar. Pior ainda, tinha que fazer o trajeto declinando: a - ae - ae - ama - a - i - i - orum - is - os - i - is. Regina, Regina, você me alucina. Regina, Reginae, Reginae, prima da Rosa, Rosae, Rosae, vocês são todas cretinas! Tinha que ler as catilinárias. Doideira. Prá que tudo isso?

Saía o de latim, o meu Rufino, não sem antes deixar o eco do "persona tragicam forte vulpes viderat", entrava a de francês, minha mimosa Luluz. "J'ai cassé le dó da ma clarinete, j'ai cassé le dó de ma clarinete. Ah! se papa il savait, trá, lá, lá! Il dirait, il chantrait. Opá camarade, opá, opá, opá".

Mas o que me calava fundo, muito fundo, fundo mesmo, e me embargava, dava nó nas tripas e engasgo, era quando a gente se arrumava feito garrafa de coca-cola em prateleiras de supermercado para cantar La Marseillaise. Coisa bonita, se faz devagar, sem pressa, diz Keilah Diniz. E a do canto orfeônico? Seria a Dona Selva, por acaso? Não consigo lembrar.

Aquilo parecia harmonia brotando do chão. Juro. Tudo com regência. Compasso binário, compasso quartenário e terciário, se coubesse. Um, dois, três. "Meus sinos, queridos sinos..." E as duas mãos alvas, com os indicadores ligados aos polegares, mais pareciam o bailar de dois pequenos barcos. Os textos de português eram coisa pra maluco nenhum botar defeito. A mulher do sino de ouro... Doem minhas costas só de lembrar o tanto de moedas que a velha doidona escondeu debaixo do colchão para construir seu sonho de consumo.

Os desenhos geométricos, Santo Deus. aquele montão de gregas pintadas em degradé, com lápis de cor da Johann Faber, comprados na papelaria do seu Anastácio. A gente sabia ler, escrever e falar. Sabia, através da professora de trabalhos manuais, a fazer rendas de tenerife. A ninguém era negado o sagrado e inútil direito de saber que a tangente de um ângulo de quarenta e cinco graus é igual a um.

Valem agora, só de pirraça, alguns parágrafos sobre duas inspetoras da notre école. Elevadas ao cubo, vistas em 3D, nunca vi gentinha mais amarga do que aquelas criaturas. Dona Nair e Dona Vanda Gaston. E, de troco, ainda tinha uma filha e neta - a Teresa.

Puta que pariu! Que destino infame. Elas me marcavam de perto. Estava no banheiro, lá vinha uma; estava no corredor, lá vinha a outra. Não tinha um só minuto de trégua. Para minha infelicidade, o caminho das duas (das três, para ser mais exata), necessariamente, tinha que ser pela frente da loja do meu avô. Bastava eu chegar e minha mãe, mais histérica e paranóica do que a Neuzinha Brizola, descia o malho. Eu apanhava, apanhava tanto, tanto, bem mais do que um manequim de sapateiro. Isso tudo acontecia baseado no princípio de que uma laranja podre arrebenta com o pomar. A boa educação das minhas irmãs mais velhas, duas moscas mortas e obedientes, não podia ser contaminada por causa das ações de uma delinquente juvenil.

Ah! Tinha volta. Tinha. E como tinha. Todas, todas, sem exceção de nenhuma das pornografias escritas na parte interna das portas dos banheiros da notre école, foram de minha lavra. E não me arrependo. Desenhos de piriquitos em forma triangular e frases indecorosas, tudo eu. Tudo eu. Tudo eu. "A Dona Nair é puta". "Dona Vanda é puta". "E a Tereza, se ainda não é, vai ser". A gente tinha que aprender de tudo, principalmente a se defender. Do que valeria eu saber que a tangente de um ângulo de 45 graus é igual a um e continuar apanhando? Valeria a pena?

P.S.: Os erros de grafia de qualquer das línguas aqui expostas são de minha inteira responsabilidade. Não tenho nem mordomo, nem datilógrafo. Tudo eu, tudo eu, tudo eu. Se isso vier a virar qualquer coisa, cuidarei da revisão. Por enquanto, estou na esfera do coloquial. E tenho dito.

Leila Jalul é cronista, poeta e colaboradora do blog.

9 comentários:

Anônimo disse...

Querido Altino,
O Acre não pariu Clarice Lispector; nem Adélia Prado.Quem liga se tem aí uma Leila. Acho que sua colaboradora devia reunir as escritas em livro. Se já o tiver feito perdoe a ingnorancia e mande um pra mim. Estou com saudades. Beijo Mara. l

Anônimo disse...

Divertidas e gostosas as crônicas da Leila. Leio todas. bjs. Bruxinha

Anônimo disse...

Leila,
Notre École-(UFAC)situèe a la Getúlio Vargas, vai merecer uma crônica sua? Ou ainda é cedo?Beijos,Silene Farias.

Anônimo disse...

Mara, Mara! Te alui amiga!
Se você ficar fazendo estes termos de comparação, posso até acreditar que sou uma Brastemp! Pelo amor de Deus, faça isso não!
Aqui, antigamente, as patroas falavam quando as empregadas eram boas: não pode gabar!
Falavam isso colocando a mão nas bocas....
Não me gabe! Bote a mão na boca e não me compare com as minhas idálas! Assim, desse jeito, posso me transformar numa Narcisa !
Ai, que loucura!

Anônimo disse...

Bruxíssima! Bruxa amiga!
Vc está fazendo falta! Essa vida de federal poda, aniquila e mata o resplendor da gente. Não há açude que suporte a sede do nosso arco-iris !
Vê se pede retorno e vem pro lado de cá engrossar as fileiras dos degredados filhos de Eva! Venha alimentar, senão a ira, pelo menos o estômago dos famintos de sua poesia!
A gente não quer só comida!
Beijo grande na testa e no coração

Anônimo disse...

Silene Farias, tá querendo tirar partido de mim? Quer abusar?
Olha, por enquanto, eu sou fã da Emilinha e do César de Alencar.
Estou escrevendo sobre o tempo da inocência!
Quando eu crescer, se Deus quiser e ele há de querer, eu saio da Benjamim Constant e subo a Getúlio Vargas.
Do jeito que caminha a humanidade, não vai demorar muito!
É tudo uma questão de calma!
Um grande abraço

Anônimo disse...

Maravilha de vida e de pessoas q escrevem sobre os sentimentos do dia-a-dia como a Leila. Hahahaha! Vou ao meu antigo colégio sentar humildemente na privada pra vilipendiar antigos professores. Devo xingar só os vivos?

Coincidência: hoje mesmo o Cony escreve sobre antigos colégios e professores num artigo da Folha:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2411200637.htm

Anônimo disse...

D. Leila o meu avô esta muito feliz por poder ler o q a sra. tem escrito e estar se preparando para iniciar a comunicação com a sra. Um abraço.

Anônimo disse...

Pois é leila, o Professor Rufino costumava ir para o Papôco, e tomas todas, mas que era polido, era e muito, sempre dizia"quando alguém lhe dirigir um palavrão, não diga outro para ele, fale - Meu pensamento é recíproco -(imagina alguém seguir esse conselho naquele tempo)