quinta-feira, 20 de abril de 2006

CHAGAS FREITAS NO GLOBO



A arte que passou pela fresta do comunismo

Eduardo Fradkin

Ninguém parodiou melhor na literatura a opressão do comunismo que o inglês George Orwell. Algumas de suas idéias — como a de uma espécie de televisão que, além de transmitir imagens, recebe-as, funcionando como um vigia do Estado dentro de cada casa — podem parecer excêntricas demais. Não para o ex-diplomata Francisco Chagas Freitas [foto], que trabalhou na embaixada brasileira na Berlim Oriental de 1984 (mesmo ano que dá título à obra de Orwell) a 1991. Conversar com amigos na própria casa tendo que abafar as vozes com música alta era prática comum. Os tais amigos eram artistas marginalizados. Na Alemanha comunista, assim como durante o regime nazista, arte abstrata era “arte degenerada”.

Escutas telefônicas e alerta para interromper reunião

O clima de paranóia era palpável, conta Freitas:

— O serviço secreto comunista era mais temido que o Mossad (equivalente israelense). Instalavam escutas nas casas, grampeavam telefones e davam boas recompensas a quem denunciasse atividades suspeitas, o que jogava até filhos contra pais. Quando saía do prédio e olhava para trás, sempre havia uma cortina se mexendo. Os olheiros estavam por toda parte. Uma dia, eu estava ao telefone, sem ter discado, e lamentei em voz alta ter esquecido o prefixo de Weimar. De repente, uma voz do outro lado me deu o número. Outra vez, numa reunião com artistas na minha casa, o telefone tocou: era um funcionário do serviço secreto mandando que pusesse fim naquilo.

As histórias são muitas. Freitas teve a casa revirada enquanto estava fora (“Mudavam as coisas de lugar, mas nada levavam. Era só para mostrar que estiveram lá”) e até uma foto de si próprio, tirada sem ele saber quando visitara um artista proscrito, enviada com uma mensagem irônica, mencionando seu estado patológico: “Se a alergia piorar, cuidaremos bem do senhor”. Apesar disso, ele conclui, surpreendentemente:

— Não passei maus momentos. Nunca fui vítima de uma ação direta do governo. Tive sorte. Muitos artistas que conhecia foram interrogados.

Durante os sete anos que morou na Alemanha, encarregado do setor cultural da embaixada, o acriano Freitas usou quase todo o seu salário — de cerca de US$ 4 mil mensais, pelo que se lembra — para adquirir obras de arte abstratas. Formou assim uma coleção com mais de mil pinturas, desenhos, gravuras, colagens e esculturas que agora guarda na sua casa em Brasília. Na exposição “Além do muro”, que será aberta ao público amanhã, 45 dessas obras poderão ser vistas gratuitamente, na galeria da Caixa Cultural (Avenida Chile 230, Centro).

Hoje, com a valorização desses artistas que antes viviam na penúria (pois não desenvolviam um trabalho paralelo nos moldes impostos pelo governo), Freitas afirma que seria impossível comprar uma fração do acervo que constituiu. E não tem intenção de vender um quadro sequer.

— A maioria das obras que tenho é das escolas de Dresden e de Weimar, duas cidades da Alemanha Oriental, e feita nos anos 70 e 80. Mais de 90% delas foram adquiridas diretamente com os autores. As galerias na Alemanha Oriental, exceto uma que havia em Dresden, pertenciam ao Estado, então havia dificuldade de acesso para esses artistas. Fora do circuito oficial, um indicava outro. Foi assim que eu fui conhecendo cada um deles — lembra Freitas, que iniciou esse círculo de amizade graças à ajuda da dona de uma pequena galeria em Berlim que vendia camufladamente arte abstrata, enquanto expunha oficialmente nas paredes a arte figurativa aprovada pelos dirigentes comunistas.

Boa parte das obras angariadas por Freitas é em papel, pois telas custavam caro aos artistas e eram difíceis de encontrar. Além da carência de material, eles sofriam com a de modelos, já que era perigoso manter vínculos com aqueles “marginais”.

— Posei para retratos que hoje estão em museus de todo o mundo e ganhei de presente quadros que passaram a valer muito. Conheci artistas que sofreram tanto no nazismo quanto no comunismo, como Hermann Glöckner e Hans Winkler. A maioria das obras de Glöckner, que faleceu aos 98 anos, foi adquirida pelo governo, o que dá medida de sua importância hoje. Winkler era da escola de Weimar e fez telas que lembram Pollock e De Kooning, como as que estão expostas aqui, sem que ele tivesse acesso à produção de Pollock e De Kooning — diz o marchand.

Só um artista fez mais de 20 retratos do diplomata

Entre os principais nomes incluídos na mostra “Além do muro”, ele destaca Ralf Winkler (também conhecido como A.R. Penck), Strawalde, Max Uhlig e Gerda Lepke.

— Penck é o artista mais importante da Alemanha Oriental da geração que hoje tem entre 60 e 70 anos. O trabalho de seu ex-professor, Strawalde, também pode ser visto nesta exposição. Ele mesmo o verá, pois vem ao Rio. Outro grande nome é Max Uhlig, a quem o ex-chanceler Gehard Schröder encomendou um retrato. Quando não era famoso, ele fez mais de 20 retratos meus — conta.

O curador alemão Matthias Flügge, vice-presidente da Academia de Artes de Berlim, afirma que o brasileiro teve “papel fundamental” na luta contra as amarras artísticas da época. Para Alfons Hug, curador das últimas duas bienais de arte de São Paulo, a coleção de Freitas é “possivelmente a mais importante de pintura alemã oriental fora da Alemanha”.

Nota: A reportagem de Eduardo Fradkin pertence ao jornal O Globo, que agora usa proteção contra a cópia dos seus textos na web. Quando quiser copiar texto de "material protegido", faça o seguinte: salve a página e depois abra com algum editor HTML. A foto do Chaguinha, cidadão do mundo nascido no rio Muru, em Tarauacá, foi tirada na varanda de minha casa no dia 16 de abril de 2004. O cara é pré-candidato ao governo do Acre, mas já sabe que vou votar noutro cara, o Binho Marques, amigo também, de velhos carnavais. Leia mais sobre as obras do colecionador Chagas Freitas em "A arte oculta da antiga Alemanha Oriental", na Agência Carta Maior.

3 comentários:

Anônimo disse...

Altino, boa tarde.
Puro Orwell, meu Deus. A mera leitura dessa matéria já me deixou angustiada.
Eu sempre admiro a coragem desses personagens que tiveram coragem de desafiar dessa forma uma regime assassino como foi o comunismo. Aliás, como é, ainda.

Quanto aos artistas alemães, já vi alguma coisa sobre Winkler (não é nome de algum personagem de Le Carré ou do próprio Orwell?). Gostaria imensamente de ver essas telas. Mas, raramente essas exposições vêm a Goiânia.

Adorei esses nomes: Muru, Tarauacá, lindos, poéticos.
Obrigada.

Beijos

Anônimo disse...

Obrigado por manter o crédito

Anônimo disse...

Caro Eduardo, parabéns pela reportagem. Quanto a crédito, é o mínimo que eu poderia fazer. Saudações acreanas.