sexta-feira, 31 de março de 2006

DECISÃO INÉDITA

Justiça reconhece
"estrada de seringa”
como unidade de medida


Diogo Soares (*)

O juiz federal da 3ª Vara, Jair Araújo Facundes (foto), condenou a União a pagar R$ 143,5 mil aos proprietários de 17 estradas de seringa localizadas no seringal XV de Novembro, antigo Sungaru, situado no município de Cruzeiro do Sul. As terras do litígio se encontram dentro dos limites do Parque Nacional da Serra do Divisor.

Os parques nacionais são unidades de conservação criados para preservar ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica. Nos parques não é permitido o uso da terra, ainda que através de planos de manejo, o que impossibilita o seu aproveitamento econômico.


Com base nesse argumento e na própria lei, que prevê as desapropriações e a indenização decorrente destas, o juiz assinalou a indenização ante a perda do direito de usar, gozar e dispor da propriedade.

História, literatura e tradição embasaram a decisão. No decorrer da ação a União não contestou que os autores fossem realmente os donos das terras, mas o fez com relação aos limites territoriais reivindicados por eles.

A ação, que foi proposta em 96, passou por várias etapas, incluindo o intenso trabalho de peritos para identificar o real tamanho da área a ser indenizada.


A questão central da ação dizia respeito à área da propriedade dos autores, pois o título constante do registro de imóveis indicava uma “propriedade com 17 estradas de seringa”. A unidade de medida "estradas de seringa" não é reconhecida oficialmente e não traduz uma dimensão precisa e exata.

Assim, se é certo, em razão dos títulos ostentados, que os autores são proprietários, não é possível definir, objetivamente, qual a medida de uma “estrada de seringa”, cuja dimensão varia conforme fatores diversos (concentração de seringueiras, localização etc).

Concluídos os trabalhos periciais, ficaria a cargo do juiz decidir que parâmetros utilizaria para aferir as reais medidas de terra. Na decisão, Jair Facundes levou em consideração as tradicionais formas de medidas utilizadas no início do século nos seringais amazônicos, ou seja, a medida em estradas de seringa.

Ele se apoiou em textos do escritor Euclides da Cunha, que esteve no Acre entre 1906 e 1908, como no seguinte trecho:

- Ante a valia exclusiva da árvore, ali se engendrou uma original medida agrária, a “estrada”, que por si só resume os mais variados aspectos da sociedade nova, à ventura abarracada à margem daqueles grandes rios.


Os autores da ação sustentavam o direito à indenização de 45 mil hecatres, e o Incra, em procedimento administrativo, indicava uma área de 17 mil hectares.

A sentença fixou, com base em estudos diversos, costumes regionais, literatura, atentando para os limites das estradas de seringa hoje existentes em áreas como Floresta do Antimary, a extensão de 150 hectares para cada estrada de seringa, totalizando 2.550 hectares.

A sentença é passível de reexame necessário, portanto foi encaminhada ao Tribunal Regional da 1ª Região, órgão competente para analisar os possíveis recursos da causa.

(*) Diogo Soares é compositor musical e assessor da Justiça Federal no Acre.

Comentário do escritor Juarez Nogueira:
"Esse jovem juiz parece ter idéias arejadas pelos ventos da florestania... E está bem acompanhado pelo Euclides da Cunha que, aliás, deveria ser leitura obrigatória nas escolas acreanas, nos níveis de ensino médio e superior. Os textos desse autor sobre a Amazônia, artigos esparsos reunidos no livro "Um paraíso perdido", cuja primeira edição é de 1909, devem também ser leitura obrigatória para todos os governantes, juristas, empresários, funcionários públicos, cidadãos comuns e, de resto, toda a boa gente brasileira. Isabel Cristina Martins Guillen, doutora em História pela Unicamp, observa, irretocável, que "o texto de Euclides da Cunha repõe a dimensão social que deve perpassar toda e qualquer discussão sobre a Amazônia." Ora, se a terra tem função social, como determina a Constituição, nada mais justo que seja resguardada para garantir a sobrevivência de biomas e biodiversidades - incluindo aí o homem, esse parasitador que nem sempre tem a imediata e necessária consciência de seus atos e desatinos. O texto de Euclides da Cunha é de uma atualidade impressionante e traduz um sentimento universal em relação à floresta, do qual já falei em artigo publicado neste blog: "a.C.RE, um paraíso perdido", quando de minha passagem nessas terras. Lembrança indelével, meu coração ficou tatuado de verdor. O Euclides, para além da denúncia social, lembra que "o inferno se revela o lugar onde o homem trabalha para escravizar-se". Tudo, a floresta. Menos inferno. Que seja morada, refúgio, labirinto, caverna, lar, ninho, útero. Penso: será possível que alguém passe pela floresta e não fique em si um pouquinho de sua beleza, sua majestade, sua generosidade, seu cheiro, sua aragem, um sopro de vida e esperança tão forte? A floresta é amor em brotação, eternamente. Dá vontade de abraçar com ela e nisso ficar, aconchegado, quieto e para sempre, viver assim até morrer, se acabar, voltar ao pó, ali, no meio da vida da floresta. E isso não é morte. É permanência. Quando eu estive aí, a floresta me ensinou. Eu vi. Eu vejo. Eu sei. Tenho certeza".

4 comentários:

Anônimo disse...

Esse jovem juiz parece ter idéias arejadas pelos ventos da florestania... E está bem acompanhado pelo Euclides da Cunha que, aliás, deveria ser leitura obrigatória nas escolas acreanas, nos níveis de ensino médio e superior. Os textos desse autor sobre a Amazônia, artigos esparsos reunidos no livro "Um paraíso perdido", cuja primeira edição é de 1909, devem também ser leitura obrigatória para todos os governantes, juristas, empresários, funcionários públicos, cidadãos comuns e, de resto, toda a boa gente brasileira. Isabel Cristina Martins Guillen, doutora em História pela Unicamp, observa, irretocável, que "o texto de Euclides da Cunha repõe a dimensão social que deve perpassar toda e qualquer discussão sobre a Amazônia." Ora, se a terra tem função social, como determina a Constituição, nada mais justo que seja resguardada para garantir a sobrevivência de biomas e biodiversidades - incluindo aí o homem, esse parasitador que nem sempre tem a imediata e necessária consciência de seus atos e desatinos. O texto de Euclides da Cunha é de uma atualidade impressionante e traduz um sentimento universal em relação à floresta, do qual já falei em artigo publicado neste blog: "a.C.RE, um paraíso perdido", quando de minha passagem nessas terras. Lembrança indelével, meu coração ficou tatuado de verdor. O Euclides, para além da denúncia social, lembra que "o inferno se revela o lugar onde o homem trabalha para escravizar-se". Tudo, a floresta. Menos inferno. Que seja morada, refúgio, labirinto, caverna, lar, ninho, útero. Penso: será possível que alguém passe pela floresta e não fique em si um pouquinho de sua beleza, sua majestade, sua generosidade, seu cheiro, sua aragem, um sopro de vida e esperança tão forte? A floresta é amor em brotação, eternamente. Dá vontade de abraçar com ela e nisso ficar, aconchegado, quieto e para sempre, viver assim até morrer, se acabar, voltar ao pó, ali, no meio da vida da floresta. E isso não é morte. É permanência. Quando eu estive aí, a floresta me ensinou. Eu vi. Eu vejo. Eu sei. Tenho certeza.

Anônimo disse...

Juarez / uma bem cuidada edição d'O Paraíso Perdido é trabalho da Fundação Cultural do Acre. Mas, de fato, não há uma maior preocupação com a obra de Euclides pelos quadros universitários acreanos. O professor Jaco Piccolli constitui uma exceção. Foi o responsável pela edição da Fundação Cultural e, pelo que me lembro de conversas com ele, levantou a obra e o percurso de Euclides no trabalho de demarcação das fronteiras com o Perú. Tenho como epígrafe a minha tese de doutorado o trecho seguinte de uma carta a Coelho Neto:
"Nada te direi da terra e da gente. Depois, aí, e num livreo: Um Paraíso Perdido, onde procurarei vingar a Hiléia maravilhosa de todas as brutalidades das gentes adoidadas que a maculam desde o século XVII."
No pequeno ensaio a Transacreana, encontrei a referência que afirmou meu tema: a compreens~çao do espaço acreano como particularidade da realidade amazônica.

Anônimo disse...

Olá, Mário
Obrigado pela lembrança. Bom saber que você também bebeu nas fontes euclidianas que, de resto, são águas estranhas: dão mais sede na gente. O texto do Euclides chega a doer de tanta beleza, né? Nunca vi literatura e realidade tão imbricadas, tão imanentes, como rizoma e planta. Quem sabe, Mário, numa próxima visita ao Acre, possamos conversar. Será uma alegria.
Um abraço do
Juarez

Anônimo disse...

Altino, diante desses mestres, o melhor seria o silêncio reverente. Porém, minha admiração não permite que me cale.
Ver um juiz jovem ainda se moldadando nas experiências da vida com essa clareza e erudição refaz tudo que pensava de jovens no magistrado. Eu estava generalizando e isso é um erro.
Agora, o Juarez me deixou arrepiada com este sentimento, com esse "verdor no coração". Sempre soube que os homens da floresta, os amazônidas (palavra mais linda) são especiais e esse post inteiro me deu a certeza disso.
Obrigada.