domingo, 12 de fevereiro de 2006

a.C.RE, UM PARAISO PERDIDO

Por Juarez Nogueira

“Quando nós vamos pelos sertões em fora, num reconhecimento penoso, verificamos encantados que só podemos caminhar na terra como os sonhadores e os iluminados.”
(Euclides da Cunha)


Quando viajei para o Acre, em dezembro de 2005, muita gente – daí e de cá – estranhou: Mas você foi/veio fazer turismo no Aaacre (tentei reproduzir a entonação...)? Hum, hum... E, claro, não fui movido pelo turismo convencionado por força das férias de fim de ano. Não é descanso – que bem sei não tenho – o que procurava, procuro. Quem não quer sossego, pode ir para o Acre.

Para muita gente, percebi, tanto aí quanto cá, o Acre parece à margem da história, da vida nacional (aqui em Minas, ao contar da minha viagem, tive até que mostrar o mapa do Brasil para algumas pessoas...), como que condenado a uma “extraterritorialidade” confinada em si mesma (aí no Acre, ao contar da minha terra, tive até que mostrar o mapa do Brasil para algumas pessoas...). Engano. O Acre está dentro, sertão que é, em toda parte, é dentro da gente.

O Euclides da Cunha soube muito bem disso. Em 1904, nomeado pelo Barão do Rio Branco como chefe da Comissão do Alto Purus, embarcou rumo à Amazônia. Para muito além e antes do cargo que então ocupava, foi em busca de um paraíso que tanto desejava. Conta-se que frustou-se. Encontrou-o já corrompido, viu ali o homem como um intruso, num jogo de forças paleozóicas, como se pairasse sobre os altos da floresta um artista sobrenatural que pintava uma paisagem num dia e borrava tudo no outro.

Euclides registrou suas impressões em alguns artigos reunidos no livro “Um Paraíso Perdido”, leitura que recomendo, obra inacabada de um escritor do qual se esperava uma soberba literária da lavra de “Os Sertões”. Pois é dele que tomo emprestado essa definição, se assim posso dizer, para tentar traduzir um sentimento que estreita meu coração encharcado das memórias acre-doces que ora carrego. É isso: um paraíso perdido. Com toda a ambigüidade, com todo o paradoxo irremediável que o termo carrega. Perdido porque há o que se encontrar; perdido porque há o iminente risco da exploração e da devastação, ameaça que voa rasante – e pousa (!) – sobre essa região de florestas.

Sim. A floresta. A natureza solene que vi do alto e de perto, mas não vi intocada. E é isso o que me co-move. É que concreto, asfalto, luz elétrica, atrações turísticas e assemelhados, cá os há um tanto. Não é isso o que me levou a embarcar num ônibus e atravessar quatros estados brasileiros em busca de um paraíso perdido.

Todo mundo procura um paraíso, mente quem diz não, um shangrilá particular. Eu bem sabia/sei o que procurava. Um dia aí, o Toinho Alves me perguntou: E aí, o que achou? Respondi: Achei não, encontrei. Achar me parece tomado de acaso, desgarrado de propósitos que põem na estrada o estradeiro. Encontrei me devolve a concretude de uma busca, como alguém que tenha sede e cava a terra até que a mão finalmente dá na água escura e pode-se, afinal, saciar a sede.

Mas o Acre, Rio Branco, Xapuri, Cruzeiro do Sul, as aldeias katukinas, os igarapés, a floresta, os povos da floresta – que nome lindo para ninar memórias e saudades –, nada disso matou minha sede. Ao contrário, deu mais. E muita. Mais fundamente me devolveram as minhas rasuras humanas, certezas que já tinha, tudo uma experiência esfingética, socrática, só sei que nada sei. Há, sim, no Acre, algo não de “extraterritorial”, mas de “extraterrestre” e não é coisa de ovnis. É um encantamento, uma luz verde e amarela – EU VI – que entrelaça esse povo da floresta com uma natureza grandiosa, a humana inclusive, retrato fiel desse Brasil gigante curvado pela própria grandeza, que deixa a gente, parece, sempre à mercê um estado de forças que acolhem e expulsam com mesma intensidade e calor, o tempo todo a sensação de ser banido de um paraíso que só se deixa vislumbrar aos poucos, devagar. O Acre me deu essa confirmação. Por isso eu não o recomendo a ninguém. Há o risco de se amar demais, querer mais, o difícil amor das mais fundas raízes, de uma imensidão úmida, que submerge a gente, faz atolar que nem aconteceu comigo no barro das margens do Rio Juruá, onde fui batizado pelo sentimento de que, uma vez no Acre, no Acre sempre. Fui em busca de respostas, para mim, por razões que aqui não dizem respeito. Encontrei mais perguntas, sigilo, compromisso, verdades confidenciadas em sopro de vento que não faz curva, pela gravidade obviada no dito de que “em terra de sapo, de cócoras com ele”, jungido de segredos e sagrados por todos os cantos. Agora, no íntimo, só vou grafar assim:

a.C.RE

Quem ler, faça disso o que quiser, dádiva ou danação. É a minha vingança. Risível e inócua como, sei, é minha pequenez. E tenho certeza que tanto me foi dado em tão pouco tempo justamente para que eu não me arredasse dessa curta convicção. O Acre tem a ensinar. E a aprender também. Quando digo o Acre, digo as gentes com tudo que nele há. Pode ser uma lição de florestania para o Brasil. Pode ser a “descoberta” de que o estado em si não precisa acompanhar o desenvolvimento urbanóide-obssessivo que faz o “progresso” das bandas de cá, porque também, como diz a canção, miséria é miséria em qualquer canto, seja em Nova Iorque ou em Tarauacá. Pode ser a assunção do ideal de que o isolamento na floresta é, talvez, que a faz paraíso, mergulhado nos silêncios seculares que gestam as mais preciosas pedras, tesouro para quem se coloca em prontidão para buscar. Eu encontrei, e justamente por isso, estou perdido.

É que eu tive de vir embora. Fiquei sem lugar. Voltei para minha terra. Ainda não consegui me “assentar”, juro, a sensação de não pertencer a lugar nenhum, de que algo ficou para trás, carregando meu corpo adâmico com a alma mergulhada numa saudade edênica, abissal. Tudo culpa do a.C.RE. Trouxe uma muda de jambu, está viçoso e esparramado como é a alegria. Quando o avião levantou vôo na noite de Rio Branco, a planta segura aos meus pés sob a poltrona, eu recapitulei: o que eu vim fazer aqui? A resposta brotou sem esforço: uma planta sabe de raízes. Estou aqui, ilhado de concreto, siderurgia e aço, cidade-oficina cantam os hinos da minha aldeia, um clima seco, duro, mineral, como se tudo fosse feito de pedra. E no Acre, meu Deus, tudo parece feito de árvore.

3 comentários:

Anônimo disse...

Altino cobrou um preço justo ao Juarez Nogueira. Justo e doce. Falar e escrever sobre o Acre é uma delícia.
Pode ser a floresta o maior patrimônio do território acreano. E nisto não seria único. Temos outros estados amazônicos com belezas comparáveis.
Quando vejo alguns acreanos reclamando das coisas ou da política, digo: o maior patrimônio do Acre são os acreanos. Todos como Altino, de coração imenso, de ternura transbordando, de braços abertos e poderosos para acolher e proteger.
As saborosas sensações de Juarez precisam ser deletreadas calmamente, para se entender o que sentiu.
Para dar a minha tradução, eu diria que lá, na terra do Juarez, tudo parece feito de pedra. E no Acre, tudo parece feito de vida.
Deus salve a Amazônia.

Anônimo disse...

Altino, eu nem o que dizer depois de ler esse artigo. A alma parece que quer sair pela boca, meu coração ficou absolutamente doido aqui dentro de mim, de tanta emoção, pelo Acre, por esse Acre cantado aqui e por esse deslumbramento que o Juarez mostrou.
Vou guardá-lo entre os mais bonitos e profundos que já li.
Obrigada.

Beijos

Anônimo disse...

Não o conheço e seria até esquisito explicar como cheguei até esse artigo. Mas o que realmente gostaria de deixar registrado que será quase impossível escrever um texto tão bom assim novamente.
Parabéns.
Marco; Mineiro; vou conhecer o Acre.