quinta-feira, 8 de dezembro de 2005

CHICO MENDES



MÁRCIO SOUZA DESRESPEITA A MEMÓRIA DO SERINGUEIRO

Por Gomercindo Clovis Garcia Rodrigues*

Li – e não gostei! – o livro “Chico Mendes”, de autoria de Márcio Souza, da coleção “A Luta de Cada Um”, do Instituto Callis.

O livro só tem três coisas boas: o papel, a diagramação e as imagens.

O texto mostra um autor que escreve apenas com o “peso da fama”, desconectado e desligado da história e dos fatos. É uma violência à própria memória de Chico Mendes.

Para se ter idéia da “falta de cuidado”, com o perdão do eufemismo, na edição do livro, os erros começam com os “financiadores” da publicação. Explico: conseguido aprovar o projeto pela “Lei Rouanet” ou Lei de Incentivo à Cultura, a busca de “financiadores” não foi nem um pouco cuidadosa. Entre os que financiaram a obra está a conhecida CBC (Companhia Brasileira de Cartuchos), conhecida fabricante de armas e munições. A falta de cuidado está, exatamente, no fato de Chico Mendes ter sido assassinado com um tiro de espingarda, provavelmente arma e munição fabricadas pela CBC, mas mesmo que fossem, a espingarda e a munição, de fabricação de outra indústria de armas e munições, ainda assim é injustificável o fato desse tipo de indústria ter seu nome propagandeado num livro que usa como “merchandising” o nome de Chico Mendes. Qual o sentido de se publicar um livro sobre Chico Mendes com o apoio da “CBC”? Seria uma tentativa de “limpar a imagem” das indústrias de armas e munições? Um mea culpa? De que adianta isso agora?

Mas não é somente o fato da publicação contar com o apoio da CBC que faz do livro uma obra não recomendável.

Falta ao autor, Márcio Souza, conhecido nacional e internacionalmente, humildade para buscar as informações de forma a transmiti-las o mais próximo da verdade possível, mesmo que de forma romanceada.

A “falta de cuidado” é tamanha que não se preocupa nem com o fato de que a Amazônia é uma imensidão, sendo, na verdade, não um único ecossistema, mas vários dentro de toda a região, conforme defendem vários estudiosos do tema. São as “amazônias” e não a “Amazônia”.

A “atitude” de Márcio Souza fica evidente quando, ao iniciar seu relato fala, no Acre, em “terras firmes”. Essa expressão é típica do seu Estado natal, o Amazonas, onde há as áreas de várzea (alagáveis) e as “terras firmes”. No Acre tal situação não ocorre com a intensidade que acontece no Estado vizinho, daí não existir aqui, tal expressão no uso freqüente entre os habitantes da floresta.

Também não era da prática dos seringueiros o plantio de seringueiras, especialmente com a “preparação de mudas” no período das chuvas (o “inverno amazônico”).

O distanciamento do escritor fica flagrante quando mistura e/ou altera fatos, nomes (“cria” Raimundo Barbosa, “fundindo”, possivelmente Raimundo Mendes de Barros, primo de Chico Mendes e uma das principais lideranças de trabalhadores rurais de Xapuri, contemporâneo de Wilson Pinheiro, com Júlio Barbosa, quando, na verdade, pelo relato, estava falando de Raimundo Barros), datas histórias, registradas em documentos etc. Essa “falta de cuidado”, de checar “coisas pequenas” fazem do livro um amontoado de impropriedades, para ser, novamente, eufemista.

A “falta de cuidado” de Márcio Souza faz, por exemplo, que ele não registre o Chico Mendes como vereador em Xapuri no período de 1977 a 1982, quando não esteve diretamente envolvido na luta sindical, mas que, com sua atuação como parlamentar, aproveitou de forma fantástica a Câmara de Vereadores de Xapuri para denunciar a devastação da floresta, a expulsão de seringueiros de suas colocações, numa época em que pouca gente no Brasil discutia a questão da Amazônia como Chico propunha na sua querida Xapuri. Sua atuação foi tão determinada e dedicada que, para não perder o mandato de vereador, ameaçado de cassação após promover, como presidente em exercício da Câmara Municipal, uma reunião com os trabalhadores rurais de Xapuri, no recinto do Parlamento Mirim, teve de renunciar ao cargo de vice-presidente da Casa.

Isso Márcio Souza nem sabe, pois menciona que nesse período, Chico esteve “escondido” no seringal, voltou a cortar seringa só.

Aliás, o desligamento da verdade é tão grande que, por exemplo, Márcio Souza, relata que quando foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional, Chico Mendes estava somente “cortando seringa”. Não é verdade! Naquela época Chico Mendes era vereador em Xapuri e participou do ato público no dia 27 de julho de 1980, em que foi feito um protesto contra o assassinato de Wilson Pinheiro, exigindo-se a punição dos culpados, com a participação do então metalúrgico Lula, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, que, também, propunha a criação de um “Partido dos Trabalhadores”. Foi a participação de Chico Mendes, vereador que era, nesse ato que lhe rendeu o processo de “enquadramento na Lei de Segurança Nacional”, até porque no outro dia, um capataz de fazenda, tido por fazendeiro, foi morto numa ação coordenada para atribuir a culpa aos seringueiros que, no entanto, levados a julgamento pelo Tribunal do Júri da Comarca de Brasiléia cerca de 20 anos após os fatos, foram todos absolvidos!

Isso está documentado!

Escrever com o “peso do nome”, como no caso do livro em apreço é desrespeitoso para quem lê, acreditando que um escritor do “quilate” de Márcio Souza seria mais cuidadoso, mais dedicado, mais escritor, não “escrevinhador”...

Outro “descuido” de Márcio Souza foi levar para as páginas do seu livro a “imagem americanizada” dos desmatamentos na Amazônia e dos “empates”, quando fala em “tratores”, “grossas correntes” e os “empates” como sendo um ato de seringueiros que se postavam “à frente de enormes tratores”, estes trazidos por “jamantas”. Isso nunca aconteceu. Não era assim a realidade nos seringais de Xapuri, nem no Seringal Nazaré, que a Bordon começou a desmatar.

Os desmatamentos eram feitos com motosserras, não com tratores. E os operadores das motosserras, normalmente ex-seringueiros que migravam para as cidades e, não tendo trabalho, na época do “verão amazônico” (de maio a outubro), eram “contratados” pelos “gatos” para a realização do duro trabalho de desmatar a densa floresta.

Os “empates” realmente eram um diálogo entre iguais, não era uma “conversa” com “operadores de tratores”, mas sim, entre seringueiros e ex-seringueiros, na sua maioria, que conheciam bem a realidade, daí, sempre ser um ato pacífico em relação aos trabalhadores... Quando havia a destruição dos acampamentos, era sempre precedida da retirada de todos os pertences dos trabalhadores (suas roupas, redes, cobertas), numa demonstração de que não se estava lutando “contra trabalhadores”, mas em defesa da floresta e das colocações que estariam sendo atingidas pelos desmatamentos. A última tentativa de desmatamento da Bordon, que gerou o último “empate” na região, culminou num desmatamento que teve de preservar, por determinação judicial (foi a primeira vez que se ganhou alguma coisa na Justiça, naqueles tempos!), a Colocação Rio Branco, do “Antônio Edgar”, que seria praticamente toda destruída, fato negado pelo “Seu Tomaz”, capataz da Bordon, mas constatado por perícia do INCRA, feita por determinação judicial. O “Antônio Edgar” está, até hoje, vivendo em sua colocação graças àquele “empate”.

A “falta de cuidado” do livro estende-se, inclusive, ao “Glossário” do final, que teria a finalidade de “familiarizar” o leitor com termos regionais. Ocorre que, no caso, pelo menos duas palavras estão “explicadas” de forma errada: “Espera”, na região, não é “um grupo de caçadores que ‘esperam a passagem da caça’”. É o local em que o caçador – pode ser um só – fica “esperando” a caça; normalmente é feita nos galhos de árvores próximas dos locais de “comida” das caças. O seringueiro ou “arruma” um trapiche nos galhos das árvores ou arma sua rede, onde fica sentado a espera da “entrada da caça” no “barreiro” ou na “comida”; “Poronga” não é, na região, “porongo, espécie de recipiente, cuia, cabaça”. Aqui é uma lamparina que o seringueiro “encaixa” na cabeça para poder andar durante a madrugada dentro da floresta com as mãos livres.

Essa falta de conexão com a realidade é que faz com que, na verdade, Márcio Souza não consiga mostrar, principalmente, a doçura da luta dos seringueiros...

Tirar Chico Mendes do contexto é a maior violência que se comete contra sua memória, contra tudo o que ele pregou e defendeu durante seus 44 anos de vida... E é isto, infelizmente, que faz Márcio Souza no seu triste livro, sem doçura, sem história, sem contexto, sem respeito à Amazônia e a seus habitantes.

(*) Gomercindo Clovis Garcia Rodrigues é advogado e membro do Comitê Chico Mendes, tendo trabalhado como assessor de Chico Mendes de 1986 a 1988, em Xapuri, onde ajudou a criar a Cooperativa Agroextrativista de Xapuri Ltda. É autor de “Caminhando na Floresta”.

3 comentários:

Anônimo disse...

Essa crítica feita ao livro de Márcio Souza se configura como um roteiro às avessas tipo lotomania que você pode fazer seu jogo e o seu contrário. O crítico deveria publicar seu próprio livro. No entanto senti falta da exposição da tese. Qual foi a tese defendida por Márcio? E a do crítico em pauta qual seria? O mais importante é saber como o tema foi problematizado, qual a lógica subjacente? Num aspecto Gumercindo tem inteira razão e por isso nunca li nada sobre Chico Mendes escrito por pessoas de fora.Fátima Almeida.

Anônimo disse...

Estou lendo esse livro para a escola, e tenho uma prova dele amanhã . Gostaria de achar o resumo na Internet, coisa que não está dando certo .

Dá pra alguém falar algo sobre esse livro?

Amapá, minha amada terra! disse...

Eita! Terminei a leitura e fiquei com uma boa impressão, mas foi um choque encontrar considerações tão severas, afinal, é uma literatura infantojuvenil e achei instigante para qualquer leitor.